À espera de uma cena portuguesa na fotografia

Os Encontros da Imagem, em Braga, têm como tema a felicidade. Procuram reflectir sobre a saturação de imagens. Entrevista à directora artística Ângela Ferreira, que fala num festival antigo com sangue novo. Começaram esta semana e ficam até 5 de Novembro.

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A directora artística Angêla Ferreira está há quatro anos à frente dos Encontros da Imagem FOTO: DR

Há um mês em Braga que é diferente dos outros. E não é o mês em que a cidade se veste de roxo para relembrar a condenação, a crucificação, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo. Os Encontros da Imagem de Braga (à beira dos 30 anos) tornaram-se parte do quotidiano dos bracarenses com exposições por toda a cidade. Este ano, o tema é a “Felicidade”, que ensaia uma aproximação “ao lado mais humano e menos tecnológico” do que nos rodeia, um apelo a “uma consciência afectiva”, num tempo de produção de imagens que se move a uma velocidade furiosa. Conversa com a directora artística Ângela Ferreira, que ao quarto ano à frente dos Encontros da Imagem de Braga tenta o melhor de dois mundos: sedimentar o que já existia e fortalecer o que é novidade.

Quando abandonou a liderança dos Encontros da Imagem, em 2012, Rui Prata afirmou que saía com a expectativa de que o festival fosse rejuvenescido. Acha que nestes quatro anos esse desejo do fundador foi cumprido?
Os Encontros são um festival antigo com sangue novo. Há um lado nuclear em torno dos artistas consagrados, uma linha que vem do tempo do Rui Prata e que se mantém. Mas temos aberto outros campos e tenho orgulho de ter inaugurado open calls que permitem alargar o espectro do que pode ser visto. Recebemos candidaturas de todo mundo. Este ano chegaram cerca de 400.

E para além das open calls para novos artistas?
Há o Grande Prémio Emergentes DST, que arrancou quando já estava a trabalhar com o Rui e que é atribuído depois de uma leitura crítica de portfólios. Hoje este prémio acaba por ser a menina dos olhos do festival, porque é o resultado do trabalho de cerca de duas dezenas de críticos que analisam 80 propostas.

Como olha para o que se passou depois da entrega destes prémios?
O primeiro foi atribuído a Vergílio Ferreira, que, apesar de já apresentar alguma regularidade em termos expositivos, construiu desde então uma carreira com provas dadas. Tito Mouraz (em seis edições houve dois portugueses a vencer) obteve notoriedade com o mesmo prémio. Ou seja, o prémio e a exposição que ele permite colocam o artista numa plataforma enorme onde é mais fácil o reconhecimento do seu trabalho. O prémio não é uma pedra que cai em saco roto – é algo que tem tido ressonância.

Como olha para a produção fotográfica nacional dos últimos anos?
Tem havido trabalhos relevantes. Mas foram muito influenciados pelo discurso da crise. Por outro lado, foi necessário fazer um esforço maior para se encontrar um equilíbrio entre produção e discursos que pudessem valorizar a fotografia portuguesa. Continuamos a fazer muito com pouco dinheiro.

Olhando para o que se passava há quatro anos, quando assumiu a liderança, e comparando com o que se passa hoje, há mais e melhor fotografia em Portugal?
O grupo de fotógrafos portugueses com trabalhos relevantes tem vindo a crescer. Podemos ver sinais dessa situação, por exemplo, no festival de Arles [em França], onde cada vez é mais comum encontrar propostas de artistas portugueses na linha da frente. Arles é um festival que abre muitas portas. Há novos colectivos a surgir e temos a editora Pierre von Kleist, que chegou ao topo. Não houve um crescimento rápido, mas sinto que estamos a construir um caminho interessante que pode vir a dar uma cena portuguesa na fotografia. Sinto que tem havido uma evolução gradual, mas lenta.

Podemos estar próximos de uma cena portuguesa na fotografia?
Acho que estamos próximos desse nível, que pode chegar através de uma forma distinta e ousada de apresentar. Estou a lembrar-me de exemplos como o de Tiago Casanova e de Pauliana Valente Pimentel ou de artistas de outra geração como António Júlio Duarte e André Cepeda. Estamos a alimentar um grupo com propostas muito interessantes.

Há uma quota mínima para exposições de artistas portugueses nos Encontros?
Este ano há uma actividade dedicada apenas a artistas portugueses, a Postcards from Portugal. Há muitos anos o festival tinha a tradição de promover trabalhos de artistas internacionais capazes de contribuir para as memórias da cidade. Pegámos nesse ponto de partida, alargámos o âmbito geográfico de Braga para o país e fizemos uma chamada apenas para artistas portugueses. Foram seleccionados sete. E tenho a certeza de que cada um deles pode voltar ao festival com exposições individuais nos próximos tempos.

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FOTO: DR

Mas não há lugares guardados para artistas portuguesas nas exposições de primeira linha?
Não há. Sentimos que o festival precisa de continuar a cultivar esse lado internacional e não exclusivamente português. Nas candidaturas ao prémio DST, por exemplo, as candidaturas portuguesas são muito reduzidas. E este fenómeno é significativo no pensamento que temos estado a ter para o festival do próximo ano. Talvez dediquemos uma edição só a Portugal.

É comum nos festivais o número de exposições sucederem-se às dezenas. Não estarão os festivais a contribuir para a confusão visual?
Tenho consciência desse problema. Na primeira edição que liderei, confesso que fiquei deslumbrada com a possibilidade de expor muita coisa. E isso tornou-se um problema por causa do desafio de dar o máximo de qualidade a todas as exposições. É tentador expor muitas coisas, mas a beleza de um festival não se faz à custa de muitas exposições. Este ano tentei ter essa disciplina. A exposição de Cristina de Middel, que é muito contida, é um exemplo de como se pode responder a essa fúria visual.

Em 2017, os EI chegam aos 30 anos. De que forma esta idade adulta tem contribuído para consolidar o festival internacionalmente? É fácil convencer artistas de reputação mundial a exporem em Braga?
É muito fácil. Muitas vezes o problema é que não conseguimos pagar os fees que nos pedem. Mas o festival é imediatamente conhecido e não há dúvidas sobre o seu prestígio. O Rui Prata nesse campo fez um trabalho magnífico, porque conquistou a confiança de uma série de festivais que nos permite ter esse trabalho de casa bastante adiantado. Hoje dedicamo-nos mais a olhar para o lado fresco, a ousadia e as novas tendências, como o caso dos fotolivros. Os últimos quatro anos foram de sedimentar o que já existia e fortalecer o que era novidade e que acontecia um pouco erraticamente, como a leitura de portfólios.

Há muitos trabalhos inéditos ou produzidos especificamente para os Encontros?
Há vários trabalhos inéditos. Dou o exemplo da exposição Et In Arcadia Ego, de Georges Pacheco, um autor que se tem apresentado aqui regularmente e que se tornou um amigo do festival.

Mas tem uma ordem de grandeza?
Posso dizer que cerca de 30% das exposições são de trabalhos inéditos. A maior exposição inédita é a do Mosteiro de Tibães, onde há autores que nunca expuseram ou que expuseram raramente.

Com a semana de abertura com uma programação tão recheada não há o risco de se esvaziar o resto do festival?
Esse perigo é real. Os festivais têm por hábito usar os seus principais argumentos na semana de abertura, porque é mais fácil concentrar a vinda de artistas e potenciar o encontro entre pessoas. Mas também é muito importante o trabalho que temos vindo a fazer com as escolas ao longo do festival.

Quer explicar melhor o raciocínio que levou a esta escolha do tema “Felicidade”?
A “Felicidade” é um tema complexo. O festival tem procurado reflectir sobre questões sociais para chegar a públicos que não têm uma relação directa com o universo da fotografia. Este tema é forte e com ele queremos conquistar público e tentar reacender a discussão entre a fotografia e as questões sociais a ela associadas. É um tema que procura reflectir sobre a saturação de imagens: vivemos nesta contradição em que há cada vez mais poluição visual pela imagem, mas produzimo-las mais do que nunca. Pareceu-nos interessante pôr isto em causa e perguntar para que é que produzimos tantas imagens. Por outro lado, vivemos num tempo de grandes mudanças sociais, com movimentos de refugiados que procuram o seu lugar, um mundo onde a vulnerabilidade perante a violência e os atentados ganhou uma nova expressão.

E esta edição serve para nos lembrar que a felicidade existe? É isso?
Exactamente. Não estamos a falar da felicidade em si. Queremos mostrar que existem várias expressões desse sentimento que pode variar muito e pode estar relacionado com a morte, com a beleza... Temos consciência da desumanização e da deterioração das relações nas sociedades actuais, por isso quisemos uma edição que permitisse a descoberta do outro através daquilo que pode significar a felicidade. Pareceu-nos um bom caminho para tentar uma aproximação ao lado mais humano e menos tecnológico, um apelo a uma consciência afectiva. Claro que não temos a pretensão de dizer o que é a felicidade, mas acreditamos que a fotografia pode ajudar a colocar algumas perguntas importantes para se avaliar o momento actual. Quisemos dar sentido a uma felicidade que se faz na relação com o outro.

Na apresentação do festival fala da intenção de “contaminar” a cidade com o desenrolar dos Encontros. Que participação tem conseguido dos bracarenses?
Setembro tornou-se o mês da fotografia para Braga. As pessoas da cidade já convivem com esta data com muita naturalidade e entram espontaneamente nos espaços expositivos. Creio que o público bracarense está conquistado. O mais importante agora é chegar às cidades vizinhas.

Apesar de uma ligação longa entre o festival e a cidade e da existência de um Museu da Imagem, não tem havido formação que potencie de maneira recorrente o aparecimento de novos nomes na fotografia portuguesa. Braga não seria o terreno indicado para um curso superior de Fotografia?
Sim, claro. Há muita vontade de que isso aconteça. Temos vindo a fazer contactos nesse sentido, nomeadamente com a Universidade do Minho para que se estabeleça um curso superior de Fotografia. Pode haver boas notícias em breve. Diria que é um dos maiores objectivos dos Encontros, que devem ser muito mais do que um festival de fotografia.

Mas seria apenas no quadro da Universidade do Minho?
É um dos caminhos. A partir de uma iniciativa privada ou associativa seria muito mais difícil. A câmara também está consciente desta lacuna e juntamente com a universidade procuraremos um entendimento para um final feliz. 

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