A dura e cruel vida dos homens brancos americanos

Como é sabido, a vida do homem branco nos Estados Unidos é uma narrativa carregada de dificuldades. Com todo o sarcasmo que se adivinha, Paul Zaloom apresenta no FIMFA uma sátira política em que o humor, corrosivo, cai em cima da sua própria cabeça.

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Paul Zaloom estava à espera da sua vez, entre muitos outros humoristas, para apresentar a uma série de produtores o pitch para um novo espectáculo que tinha em mente. Na verdade, só teria de fazer esse “discurso de vendedor” no dia seguinte, mas enquanto via os outros comediantes a tentarem a sua sorte foi percebendo que “todos os espectáculos eram sobre afro-americanos a falarem da sua identidade, ou latinos a contarem a sua história como latinos nos Estados Unidos”. Ao ouvir aquelas sinopses, pensou instintivamente “Então e eu?!”. E logo se riu do pensamento absurdo que o tinha invadido. “De facto, eu tenho sido eu desde o primeiro dia, 24 horas por dia. Achei que seria hilariante fazer um espectáculo sobre isso [isso sendo a vida dura do homem branco na América do Norte] e durante a noite redefini o que ia apresentar.”

No dia seguinte, mostrou aos produtores os primórdios daquilo que viria a ser The Adventures of White-Man, espectáculo que parte desse desconforto enquanto homem caucasiano nos Estados Unidos, sabendo que o corpo lhe traz as mais variadas vantagens e que a atenção mais recentemente dedicada às minorias resultou naquilo a que chama white fragility – uma postura defensiva deste grupo que, nos últimos anos, começou a sentir-se ameaçado por uma eventual perda de privilégios. “Nós, os brancos, somos muito frágeis, somos flores delicadas”, diz ao Ípsilon com uma óbvia nota de sarcasmo.

Numa das versões anteriores de The Adventures of White-Man, que então se chamava White Like Me, Zaloom começava o espectáculo com um número de ventriloquismo em que explicava ao boneco sentado no seu colo que o homo sapiens caucasiano (também conhecido por “cabeça de leite”, “rabo plano”, “marshmallow”, “Martha Stewart” ou “entendido em maionese”) estava a deixar de ser maioritário em estados como a Califórnia. Em seguida, tinha de convencer o boneco de que passar a minoria não implicava o downgrade para “escolas merdosas e bairros maus”, não correspondia automaticamente a ter dificuldades para apanhar um táxi em Los Angeles, nem sequer a um aumento da probabilidade de cair no desemprego ou à obrigação de incluir nas rotinas familiares recomendações especiais aos filhos para terem cuidado com a polícia

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É uma introdução às aventuras de um caucasiano que o 17.º FIMFA leva ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, desta sexta a domingo. Um caucasiano originário do planeta Caucazoid em busca de novos mundos que possa colonizar, doutrinar, evangelizar, corrigir e anular. Esta ideia de que nada existe até à sua validação pelos “brancos descobridores” estabelece um link evidente com a experiência dos nativos americanos (partilhada por tantos outros territórios colonizados) e com um relato com que Zaloom se deparou no seu processo de pesquisa. “Penso que isto não chegou a ser implementado, mas houve planos dos colonos brancos nos Estados Unidos para espalharem vírus de varíola em cobertores a distribuir pelos nativos para que estes apanhassem a doença e morressem.”

A provocação constante de Paul Zaloom, figura de enorme popularidade nos Estados Unidos – e na América Latina – graças ao programa televisivo Beakman’s World, não tardou a gerar controvérsia. E as vozes ofendidas fizeram-se escutar. O senador republicano John McCain haveria de emitir um comunicado denunciando a atribuição de fundos estatais à produção de um espectáculo de marionetas que, na sua teve lotação esgotada no dia do espectáculo. “Cheguei a ter algum respeito por ele, mas isso já lá vai”, diz Zaloom sobre o senador. “Quando ele nomeou a Sarah Palin [para sua candidata a vice-presidente nas eleições presidenciais de 2008, vencidas por Barack Obama], todo o respeito voou pela janela. Mas é verdade que é o único republicano a fazer frente ao Trump. Enfim, tenho sentimentos ambivalentes, mas feitas as contas é um idiota.”

Em terra de Trump

Em relação a Donald Trump, os sentimentos de Paul Zaloom não são propriamente ambivalentes. Aliás, ao longo destes meses que já leva a nova administração norte-americana, a vida do White-Man tem sido “fabulosa, tudo é perfeito”, descreve Zaloom. “Os brancos estavam zangados, sentiam-se marginalizados; quando escrevi o espectáculo, muito antes das eleições, toda a ansiedade quanto à circunstância de deixarmos de estar em primeiro lugar era muito palpável.” Em cada frase de Zaloom, como é evidente, há tanto de análise crítica quanto de derramamento de ácido sobre o seu próprio discurso. Como se curto-circuitasse em permanência.

Trump – regressemos a ele – fascina Paul Zaloom por ser “um tipo sem qualquer filtro”. “Acho-o hilariante. A forma como ele fala, como usa a linguagem, a sintaxe, o ritmo, tudo nele é a quintessência do nova-iorquino idiota.” O humorista nunca o diz. Mas a forma como fala do Presidente faz pensar que poderia tratar-se de uma marioneta, o receptáculo exagerado e caricatural de uma personagem arquetípica da sociedade norte-americana. E se um dos reconhecidos efeitos de Trump foi o de soltar a língua ao preconceito, Zaloom responde na mesma moeda, defendendo que sente que “a América merece ter como Presidente um otário monumental”. “Claro que os outros antes dele também o eram, e Hilary Clinton, enfim… Mas há muitas coisas que posso fazer em resposta: posso estar informado, posso ler jornais, ir a manifestações e fazer donativos, mas também posso fazer espectáculos de marionetas sobre estes temas, para que as pessoas se permitam rir de assuntos que estão a dar cabo delas.”

É impossível a Paul Zaloom saber o que teria sido de The Adventures of White-Man se tivesse sido imaginado já durante ou após as eleições – acredita que poderia não ter conseguido o financiamento necessário –, mas não ignora que estes são tempos especialmente desafiantes para fazer sátira política. O desafio passa até por estar em competição com uma realidade tão exagerada e absurda que rouba algum espaço de manobra ao humor. Mas há uma vantagem com as marionetas: “É tão ridículo aquilo que fazemos que temos uma grande margem de tolerância."

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