A ditadura da ganância

Pepetela lida, neste seu novo livro, com a “ditadura da ganância” na sociedade actual angolana e com as suas eventuais raízes.

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O resultado da agilidade narrativa nem sempre é um bom romance: Se o Passado Não Tivesse Asas FOTO: Nuno Ferreira Santos

Pepetela (Benguela, 1941), Prémio Camões em 1997, é o mais prolífico romancista angolano e também, provavelmente, o mais amplamente conhecido. Com justiça e sem surpresas. O autor de A Geração da Utopia (1992) e de O Quase Fim do Mundo (2008) – para citarmos dois romances de fases bastante distintas na carreira do escritor e que são também duas obras muito diversas na intenção e na feitura – é, sobretudo, um grande fabulador, é alguém que gosta manifestamente de contar histórias. E sabe fazê-lo. Não imaginamos facilmente Pepetela angustiado diante de uma página, ou de um ecrã, em branco. Embora o gosto feliz e quase sensual que o autor aparenta encontrar na escrita seja legível em qualquer obra de Pepetela, o resultado de tal agilidade narrativa nem sempre é um bom romance. Parece-nos ser esse o caso de Se o Passado Não Tivesse Asas que, sendo o mais recente, não será um dos melhores romances do autor.

Pepetela lida, neste seu novo livro, com a “ditadura da ganância” na sociedade actual angolana e com as suas eventuais raízes, ou antecedentes, nesse passado de costas largas que foi o da longa guerra civil ocorrida depois da independência do país, em 1975. E diga-se já que a virtude mais surpreendente deste livro (para eventual infelicidade dos cidadãos angolanos?) talvez se encontre nisto: mostrar que a referida ganância não é vício exclusivo dos oligarcas do país de Pepetela, mas parece que se está democratizando, por assim dizer. Enfim, a edificação da classe média angolana por algum lado deverá começar…

Se o Passado Não Tivesse Asas conta, paralelamente, duas histórias aparentemente independentes. Uma delas tem início em 1995 e retrata a vida quotidiana, nas ruas de Luanda, das crianças que ou perderam os pais ou deles se perderam por causa da guerra civil. A outra história começa em 2012, na paz reencontrada, e encena o desregramento consumista dos novos-ricos angolanos e a ascensão económica e social da protagonista. As supostas duas histórias fundem-se, no final, numa única acção, mediante um truque narrativo desculpável (e também descartável), que não deixa de ser realisticamente relacionável com expedientes habituais em tempos de guerra: a mudança de identidades.

O romance tem perto de 400 páginas. Foi preciso percorrermos mais de metade para encontrarmos, em duas ou três páginas varridas pelos anátemas de um “Louco de Deus” e por comentários a preceito, um pedaço de prosa digno do melhor Pepetela de que nos lembramos. Porque a demorada minúcia com a qual o narrador nos descreve as andanças dos grupos de crianças e adolescentes que, na ilha ou na cidade de Luanda, disputam e catam comida nos restos deitados fora pelos restaurantes onde os beneficiários do poder se refastelam, e o comprazimento seráfico na enumeração dos luxos vínicos, gastronómicos e de costumes que tomam assento no restaurante gerido pela protagonista são, em geral, de um realismo algo pueril e folhetinesco. É verdade que, por vezes, uma bem-comportada ironia vem temperar o aparente excesso de candura da narração; por exemplo, no modo como são retratados os tiques identitários dos novos “príncipes” e “princesas” angolanos, os filhos dos nepotistas do petróleo, dos diamantes e da corrupção; mas é quase como se o narrador estivesse a cumprir uma fórmula: é uma ironia débil, que nem maça ninguém, nem aviva a prosa. O que é pior.

Sobre tudo isto, e não poucas vezes, o narrador parece desconfiar das competências ou das liberdades interpretativas dos leitores, sobrepondo no texto uma espécie de didactismo que acaba boicotando o efeito pretendido. Como neste caso: “Até a vice-governadora da província para a área social marcou previamente uma visita, levando jornalistas, pois qual é o político que vai a algum lado e não convoca jornalistas para fazerem cobertura?” (p. 273).

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