A cultura do ruído

Foi há cerca de oito anos, num restaurante, em San Diego, nos EUA. Almoçávamos tranquilamente há 20 minutos, quando alguém à mesa afirmou que estava com a sensação de que o disco que tocava no espaço parecia estar riscado.

Minutos depois, cinco pessoas tentavam perceber se era mesmo assim, concluindo que o CD estava danificado ou em modo de repetição, tocando sempre a mesma canção. Ninguém à volta se manifestava, o que parecia estranho, mas a verdade é que também havíamos demorado a entender por causa do ruído.

A partir de determinada altura, era incontestável que o ritmo vagamente country e a voz arrastada da canção se repetiam. E foi então que chamámos a atenção de um dos empregados de mesa que, perante a nossa incredulidade, respondeu que “não, o CD não está avariado”, enquanto desaparecia, atendendo outros clientes.

Voltámos a ouvir com mais atenção. Era evidente que era a mesma canção. Chamámos outro empregado, que foi mais solícito: “Só estão a ouvi-la há meia hora? Imaginem eu, que a oiço há mais de dez anos, a toda a hora!” E a explicação lá surgiu.

Aquele restaurante havia pertencido a um conhecido cantor local e, depois da sua morte, 15 anos atrás, em jeito de homenagem, alguém decretou que se faria ouvir sempre a mesma canção, enquanto o espaço estivesse aberto. E antes que pudéssemos esboçar incredulidade, acrescentou, “mas não se preocupem, é eternamente a mesma, mas oiço-a sempre de forma diferente, depende se estou triste ou alegre, se faz sol ou chuva”.

É uma forma de ver as coisas. Em vez de ser a canção a determinar o seu estado de espírito, era o seu estado de espírito que delimitava a forma como ouvia todos os dias a mesma canção. Mas na defesa intransigente da opção do restaurante, já com laivos filosóficos de quem pensava sobre o assunto arduamente há muitos anos, foi mais longe: “Pensem lá bem, qual é a diferença entre ouvir esta canção a toda a hora e ir a um outro espaço público onde se ouve sempre a mesma música, de forma indiferenciada e gratuita, até não a ouvirmos verdadeiramente?”

Ninguém parecia totalmente convencido com os argumentos, mas também não conseguíamos discordar. Havia uma certa dose de razão no que nos transmitia. A música tornou-se ubíqua, está em todo o lado, a toda a hora, substituindo-se ao ar.

Vivemos imersos na cultura do ruído. Não é apenas a música no espaço público. São os motores. Os altifalantes. Os alarmes. O falar alto. Uma cacofonia que se tornou normalidade, talvez porque no Ocidente associamos o ruído ao prazer ou à festa. De alguma forma reproduzimos isso no quotidiano, como se acreditássemos que sendo barulhentos — em todos os sentidos — legitimássemos que somos bem-sucedidos e estamos a desfrutar.

É por isso cada vez mais urgente pensar o som, para que possamos com ele ter uma relação mais ecológica. Para, em vez de quantidade, termos qualidade, porque o som afecta a qualidade da comunicação, do ambiente ou a saúde física e psicológica. Mas, mergulhados em barulho, acabamos tiranizados por ele. E nem quando chegamos a casa, prontos para o silêncio, lhe escapamos, acabando por ligar a TV, como se essa fosse a única forma de adormecer ou de confirmar que existimos realmente.

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