A culpa de todo este cocó só pode ser de Freud

Naufus Ramírez-Figueroa, o artista guatemalteco finalista do Prémio Paulo Cunha e Silva, tem a sua primeira exposição individual em Portugal. São várias esculturas de esferovite que contam a história do pequeno Hans, um doente do pai da psicanálise.

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A exposição Shit-Baby and the Crumpled Giraffe Bruno Lopes
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O artista guatemalteco, que está a trabalhar desde o final de Agosto no Kunsthalle Lissabon, transformou todo este espaço de exposições alternativo no seu estúdio, antes da inauguração Mario Lopes Pereira
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Alguns dos 14 bacios já com a resina aplicada Mario Lopes Pereira
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A cegonha que simboliza a nova irmã do pequeno Hans Mario Lopes Pereira
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O artista a cortar esferovite no espaço ainda vazio da exposição Mario Lopes Pereira
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A exposição Shit-Baby and the Crumpled Giraffe Bruno Lopes
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A exposição Shit-Baby and the Crumpled Giraffe Bruno Lopes

Naufus Ramírez-Figueroa ainda não sabe exactamente como é que será pintada a girafa. O artista guatemalteco, que está a trabalhar desde o final de Agosto no Kunsthalle Lissabon, transformou todo este espaço de exposições alternativo no seu estúdio. Quando o visitámos, na semana anterior à inauguração, marcada para esta quarta-feira, ainda nenhuma das peças da sua instalação, composta por várias esculturas, tinha descido até à cave para ocupar o lugar definitivo na exposição Shit-Baby and the Crumpled Giraffe, a primeira individual do artista em Portugal.

“Penso que vai ser branca com algumas manchas pintadas de uma maneira desmaiada. Não tenho ainda a certeza se o cocó vai ser castanho, porque tem de ser muito bonito para contrastar com o assunto”, diz ao Ípsilon, provocador, Ramírez-Figueroa, um dos finalistas da primeira edição do Prémio Internacional de Artes Visuais Paulo Cunha e Silva, a atribuir pela Câmara Municipal do Porto em 2018.

Se há uma girafa e muita matéria fecal, também há um menino-bebé, uma cegonha e 14 bacios, contámos durante a visita a esta exposição que só em Lisboa já teve um mês de produção. Mas não vamos já estragar o fim desta história e explicar de onde vem todo este cocó (se tiver feito psicanálise, provavelmente já chegou lá), vamos antes começar a conversa com Naufus Ramírez-Figueroa pela escolha da esferovite, a matéria-prima de que são feitas as suas esculturas e que normalmente não é utilizada como suporte artístico.

No Kunsthalle Lissabon foram entregues a meio de Agosto quatro blocos gigantes de esferovite, uma semana antes da chegada do artista a 24 de Agosto. Apesar de ninguém esperar muito deste plástico muito leve, geralmente usado em embalagens ou como isolante térmico, Naufus Ramírez-Figueroa explica que é um material “confortável e amigável” para fazer escultura, demonstrando, minutos depois, a facilidade com que é cortado com uma lâmina, sem esforços físicos épicos. Naufus Ramírez-Figueroa também gosta que a esferovite seja um material invisível mas omnipresente, que acaba quase sempre no lixo. Lembra ainda os impactos ambientais trazidos pelo plástico, às vezes apontados de uma forma um pouco “cliché”, como uma contaminação que nos ameaça eternamente: “A esferovite é um material feio e, ao mesmo tempo, bonito. É um material estranho... Gosto da ideia do bom gosto e do mau gosto [viverem lado a lado]. Se houver um bocadinho de mau gosto, vivo bem com isso.”

A verdade do material

Perguntamos se esta familiaridade com a esferovite vem da sua convivência com o palco na infância, uma vez que a sua família esteve ligada a experiências de teatro radical na Guatemala, mas Naufus Ramírez-Figueroa responde que a sua biografia tem sido sobrevalorizada e que nunca fez teatro. “É verdade que a esferovite é muito comum nos adereços de teatro, mas para ser honesto os meus tios faziam um trabalho experimental muito minimal, algumas vezes nus.” Mas, sim, reconhece que a teatralidade é uma característica do seu trabalho.

Depois de esculpidas em esferovite, as obras são todas revestidas com uma resina brilhante, o que fará toda a diferença, explica o artista, mostrando alguns dos bacios quase terminados. “Cubro sempre as peças com resina epóxi. Nos bacios ainda podemos ver que são feitos de esferovite, mas esta técnica, que usei pela primeira vez na Bienal de Gwangju [Adereços para Eréndira, 2014, Coreia do Sul], foi desenvolvida até as esculturas parecerem quase aguarelas, mas também ficarem brilhantes. Gosto do facto de parecerem cerâmica mas não serem. É um material que engana muito. Há aquela coisa da verdade dos materiais, que é um mote do modernismo mais puro — mas o que é a verdade?”

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Uma das esculturas que compõem a instalação, aqui matéria fecal, sobre o mobiliário do espaço, antes de começar a montagem Mário Lopes Pereira

Como explica o comunicado de imprensa da Kunsthalle Lissabon, Naufus Ramírez-Figueroa, 39 anos, “procura confrontar narrativas históricas com memórias pessoais”, principalmente da América Latina, como pudemos ver nas recentes bienais de Veneza e de São Paulo.

Ele e a família foram profundamente afectados pela Guerra Civil da Guatemala (1960-1996), tendo Naufus abandonado o país em meados da década de 1980, ainda criança, com o estatuto de refugiado, para ir viver no Canadá. Tal como na obra que fez para a Tate Modern, Illusion of Matter (2015), o artista regressa em Lisboa ao universo infantil, explorando mais uma vez a aprendizagem feita através do treino repetido.

Na Guatemala, por causa do clima político resultante da Guerra Fria, cedo as peças de teatro experimental da família foram proibidas e o grupo passou a fazer teatro infantil. “Nessa época fui a muitas peças para crianças e essas, claro, tinham adereços e cenários. Sim, acho que [este trabalho] é uma referência directa” a essas memórias de infância, que também passaram pelo teatro, mesmo que infantil.

Os limites da performance

Naufus Ramírez-Figueroa, que fez a sua formação universitária entre Vancouver e Chicago, começou a fazer performances aos 20 anos, na altura ainda muito minimais e sem recurso a grandes adereços. Ele, que não gosta de repetir performances, abriu uma excepção depois de o armazém com o seu arquivo e muitos dos seus trabalhos ter ardido em Vancouver, em 2013, um episódio de que não gosta de falar. Repetiu, então, a Breve História da Arquitectura da Guatemala (2010-2013), “aquela em que danço com os edifícios”, para ficar com um registo gravado. Comprada pelo Museu Guggenheim de Nova Iorque, é um conjunto de figurinos em forma de edifícios que são vestidos pelos performers — desde as pirâmides maias até ao modernista Banco da Guatemala —, juntamente com instruções para a utilização da obra.

Por causa de toda a moda à volta da performance, chegou a pensar desistir de a utilizar no seu trabalho, mas resolveu sublinhar “a estética” das suas intervenções. “Comecei a jogar mais com os figurinos, pedindo emprestados elementos do teatro amador ou do teatro para crianças, tornando a performance mais arriscada para mim.”

Em Lisboa, ainda pensou completar o trabalho com uma performance, mas já era demasiado o que tinha de fazer para a exposição ficar pronta a tempo.

A verdade, afirma, é que deixou de estar tão interessado na performance e sabe que já não vai voltar ao seu formato mais simples, ou seja, performance sem o lado da instalação. “Talvez me tenha aborrecido um pouco quando percebi que havia este interesse pela tradição da performance, com muitas repetições históricas, o que é muito maçador.”

O artista, que vive entre a Cidade da Guatemala e Berlim, reconhece que os objectos e os figurinos estão cada vez mais presentes no seu trabalho. Os figurinos para Breve História da Arquitectura também são objectos e contêm em si mesmos essa ambivalência. “O certificado de compra diz que podem ser exibidos como objectos ou utilizados numa performance.”

Na instalação que fez em 2011 na Casa de América, em Madrid, com as cabeças de vários poetas importantes para os movimentos revolucionários da América Latina, como Pablo Neruda, as pessoas é que desempenhavam a componente performativa, a serem convidadas a pôr as suas cabeças dentro das esculturas, que estavam suspensas. O projecto que mostra actualmente no LACMA, em Los Angeles, também é composto por figurinos, mas, ao contrário do que aconteceu na Bienal de São Paulo, não serão activados por uma performance.

O interesse geral pela performance, e de certa maneira o seu êxito, Naufus atribui-o a uma certa indulgência que há em relação ao meio. “Há muitas pessoas que têm medo de parecer mal, de fazer erros, e talvez de ver a sua reputação posta em causa com a produção de um mau vídeo ou de uma má exposição de escultura, mas com a performance ninguém se importa que seja má. Podemos revirar os olhos, mas fazer uma má performance faz também parte da própria performance. Penso que nenhum outro media tem essa capacidade de perdão, em que não se espera muito dele. Todas as performances que vejo são mesmo maçadoras ou más.”

Girafas e complexo de Édipo

A obra de Naufus Ramírez-Figueroa é um turbilhão de referências. De Freud ao trabalho do arqueólogo alemão Vinzenz Brinkmann, especialista em escultura da Grécia Antiga, que estudou a cor na arte clássica através dos vestígios deixados nas obras. Essa referência, com que se deparou um pouco ao acaso, liga-a ao início da sua relação com o pai da psicanálise, que começou por engano quando era ainda criança. “Acidentalmente, li um livro sobre os casos de Freud quando tinha 11 anos, porque pensava que era sobre mitologia grega. Era muito estranho. A girafa é uma citação directa das alucinações que o pequeno Hans teve. Através do pequeno Hans, a única criança a ser tratada indirectamente por Freud, ele pensa que provou o complexo de Édipo.” A girafa simboliza a fobia do pequeno Hans em relação aos animais, que esconde o medo da castração, inerente ao complexo de Édipo: o rapazinho, ao tornar-se consciente das diferenças entre os órgãos genitais masculinos e femininos, assume que o pénis do sexo feminino foi removido e cria uma angústia em relação à possibilidade de seu pénis poder cortado pelo seu rival, a figura do pai, como punição por desejar a figura da mãe.

“É muito interessante, porque no início da psicologia dava-se muita importância ao treino do bacio. Freud pensava que se uma criança não fosse bem ensinada podia ficar bloqueada na fase anal, numa ambivalência entre retenção e expulsão. A psicanálise contemporânea já não dá tanta importância a isso, mas tornou-se uma expressão dizer que alguém sofre de ‘retenção anal’.” Na teoria de Freud, neste estado de desenvolvimento, uma das coisas que a criança pode controlar na sua relação com a sociedade, com os pais, é fazer cocó ou não fazer cocó.

Naufus Ramírez-Figueroa ironiza e diz que é muito melhor poder falar da biografia de Freud do que da sua. A história que tem agora para contar com a exposição Shit-Baby and the Crumpled Giraffe é, talvez, uma narrativa pouco anal, porque o artista não quer ficar eternamente retido na biografia do refugiado guatemalteco que foi para o Canadá ainda criança. “Agora já têm outra narrativa”, brinca. “Desde 2012-13 que todos os projectos que faço são exactamente o que quero, e não me questiono exactamente sobre aquilo que significam. É de bom gosto? Blá-blá-blá... Faço-os.”

No entanto, a autobiografia de Naufus não pára de regressar: como algumas das suas performances são sujas, há já quem faça graças sobre se tudo isto não será afinal um trabalho sobre “uma personalidade ‘expulsatória’.” A sua.

Artigo actualizado a 25/10: introduz fotografias da exposição já montada

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