A corcunda de Ricardo e a magia de Próspero

Até 1 de Novembro, as palavras de Shakespeare são desenterradas no Teatro Nacional D. Maria II e no Teatro do Bairro, em Lisboa. Ricardo III e Tempestade, em encenações de Tónan Quito e Bruno Bravo, avançam com cadência musical num confronto com extraordinárias figuras de manipulação.

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Filipe Ferreira

Estão duas ou três crianças em palco e vão-se atirando uma bola vermelha que acerta ou não acerta numa delas. Podem conseguir esquivar-se um par de vezes, mas acabarão por ser atingidas. Não custa a perceber que o primeiro sinal daquilo que se seguirá durante quase três horas é sugerido por um descontraído, inofensivo e aparentemente gratuito jogo popularizado entre a miudagem como “mata”. Mas o aviso está feito. A partir daqui a morte passará a ser um jogo, protagonizado por um Ricardo III que vestirá quantas peles puder vestir, que habitará quantos corpos puder habitar. E surge-nos Romeu Runa, o primeiro a ser Ricardo III, a apregoar “o Inverno do nosso descontentamento”.

A imagem inicial das crianças, justifica Tónan Quito, encenador deste Ricardo III que estará no Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa) até 1 de Novembro, também “simboliza a festa que está a acontecer, os tempos de paz, em que os adultos andam todos a brincar nos quartos uns dos outros”. E isso, essa desavergonhada prática lasciva de homens que deviam estar a entregar-se à nobreza da guerra e antes se deixam menorizar pelos lençóis, agasta Ricardo, duque de Gloucester. “Mas eu não sou apessoado para o gozo”, lembra. “É rude o meu molde e não tenho a majestade do amor, para me exibir a uma ninfa atrevida.” E diz-se ainda “desfalcado da bela proporção”, “disforme”, “imperfeito”, “dado antes do tempo”. E, assim, entre uma e outra frase, Ricardo reclama a bola vermelha e enfia-a debaixo das roupas, evidenciando a sua famosa corcunda.

Em Março deste ano, os ingleses despediram-se finalmente de Ricardo III com a solenidade devida. As ossadas do rei morto na batalha de Bosworth Field, há 530 anos, foram descobertas em Agosto de 2012 num parque de estacionamento de Leicester e sujeitas a todo o tipo de testes laboratoriais para se tirar a limpo detalhes tão essenciais à História britânica quanto: a cor dos seus olhos (azuis), o seu estado de saúde aquando da morte (teria uma infecção parasitária intestinal) e, mais importante do que tudo o resto, se seria tão corcunda quanto Shakespeare nos fez crer (sofreria de uma escoliose idiopática, mas que alegadamente se fazia notar apenas num ombro direito um tudo-nada mais elevado do que o esquerdo).

Tudo isto parece de uma absoluta irrelevância. Mas dá um especial sentido à opção de Tónan Quito de apresentar uma personagem central cuja deformação parece empurrar-nos sobretudo para a conclusão de que lhe pesam as maldades, talvez a consciência; ao trocar de mãos a bola vermelha e mudar o rosto de Ricardo III que temos diante de nós, vinga a ideia de que esta doentia e pérfida atracção pelo poder pouco ou nada tem de exclusiva. A sede de poder a todos verga. Só que, no caso de Ricardo III, a cirúrgica matança a que se dedica para limpar o seu caminho até ao trono parece um simples exercício intelectual, um entretém que lhe interessa pelo deleite com que desafia a sua insidiosa oratória e a sua quase inesgotável capacidade de seduzir todos quantos se lhe apresentem. “Estou decidido a revelar-me um vilão e detestar o ócio ameno destes dias”, anuncia logo de início. “Já maquinei, preparei tramas nefastas, predições ébrias, sonhos e calúnias para pôr meu irmão Clarence e o rei um contra o outro, num ódio de morte”. E assim começa.

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Em nenhum outro momento será, porventura, mais paradigmático o sinuoso jogo de sedução levado a cabo por Ricardo: chegado junto a Ana, alega que embora tenha sido ele a matar o rei Henrique e o príncipe Eduardo, seus sogro e marido, foi “o rosto celeste” da princesa a comandar-lhe a vontade. E de palavra em palavra, de logro em logro, acaba por conquistar Ana na mais improvável das situações, quando o coração desta deveria ter lugar apenas para a dor e o ódio. “Algum dia se conquistou mulher em tal humor?”, diz Ricardo para o público, numa sedução que se estende também na direcção da plateia. Para Tónan torna-se impossível não admirar a sua mestria com as palavras. “E o texto é perturbador nesse sentido, porque faz-nos pensar em todos os ditadores que atravessam a História, em como se aproveitam de pessoas em situações de fragilidade”.

Próspero, o encenador
A meta-teatralidade vai pontuando a peça na forma como Ricardo III inclui o público nos seus planos e o convida a deslumbrar-se também com a sua elegante perversão – capaz de, na cena do enterro, colocar toda a atenção numa cena amorosa. Semelhante convocação do próprio teatro para dentro da peça é algo que fascina igualmente Bruno Bravo na sua adaptação de Tempestade, o presumível derradeiro texto de Shakespeare, para o Teatro Griot (também até 1 de Novembro no Teatro do Bairro, em Lisboa).

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Tempestade, encenação de Bruno Bravo

Acolhendo o desafio da companhia, encenar Tempestade para um elenco de sete actores, Bruno Bravo percebeu que esta era a possibilidade de meter as mãos em Shakespeare e arriscar “uma experiência um pouco mais radical e mais lírica”. E assim é: Tempestade surge-nos aqui como uma peça de câmara, trabalhada a partir de um coro e movida por uma dinâmica claramente musical, que nos vai permitindo seguir a vingança de Próspero – traído e expulso de Milão pelo seu irmão António, enfiado na carcaça podre de um barco que até os ratos haviam abandonado e salvo da morte certa por uma providencial ilha. Próspero vinga-se ao usar de artes mágicas para fazer desabar uma tempestade no mar, depois de atrair António e o seu fiel Alonso até si, o que o leva a fazer da ilha “uma espécie de laboratório de investigação da condição humana, no que concerne sobretudo ao poder”.

Ao comandar o destino de todas as personagens da peça, Próspero parece reivindicar para si o papel de encenador e disputar esse lugar com qualquer pretendente a tomar as rédeas de Tempestade. À boleia da insinuação de, que depois de traído pelo irmão, nem para um encenador Próspero está disposto a ceder, Bruno Bravo leva para palco uma outra diluição de fronteiras entre o texto e a prática teatral: o seu coro de actores, sentado sobre malas de viagem que são uma marca do exílio forçado, avança pelo texto exibindo caras pintadas numa leitura dupla – tanto tribal, de habitantes da ilha, como clownesca, não deixando mascarar a evidência de que são actores em cena. “A questão do exílio”, clarifica o encenador, “bate-me um pouco nessa ideia do que resta do teatro, de como estamos confrontados com meios cada vez mais precários para fazer teatro e temos de lidar com isso. A interrogação que coloco aqui é: será possível fazer teatro com estes meios? Estes são actores desterrados, com malas prontas, a lidarem com um texto e com uma peça que nem fazermos por inteiro porque não há actores suficientes nem cenário”.

Se a herança das tragédias gregas é fácil de identificar na presença do coro, também a relação do homem com o divino e com o transcendente se passeia por Tempestade. Próspero, “figura luminosa e sombria”, como o classifica Bruno Bravo, é uma espécie de deus auto-investido, que controla os outros – “trata o Caliban como um animal”, diz o encenador, lembrando que o colonialismo também perpassa o texto – e perdoa a nobreza com o intuito de regressar a Milão e recuperar o acesso ao poder, facilitado pela promessa da mão da sua filha, Miranda, a Fernando, príncipe de Nápoles. Mas tudo o que acontece em Tempestade acontece numa “ilha sem geografia, mágica, mental, sem arquitectura, habitada por espíritos e forças transcendentes” que pendulam entre a condição humana e aquilo que excede o homem.

Se nas palavras finais de Próspero este fala de actores que se sumiram no ar, de “palácios soberbos” e “templos solenes” que se dissolverão, e afirma que “somos feitos da matéria com que se tecem os sonhos”, há nesta proposta de Bruno Bravo um tratamento quase hipnótico trabalhado pelo coro, com algumas frases a repetirem-se em ligeiros movimentos desacertados que induzem um estado de transe. Para conseguir este efeito, ensaiado como uma ferramenta musical, o encenador andou de “lápis na mão”, brandido como uma batuta, a fim de preparar os actores para uma postura que acredita poder estar próxima daquela defendida por um cantor de ópera. Para isso, Bravo teve de colocar o “ouvido sobre a "realidade" que fica sempre ao largo da ilha.

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Autoridade e manipulação
No centro das preocupações do Ricardo III mediado por Tónan Quito está também uma procura de sentido de concerto. Não caindo na coloquialidade, as personagens falam respondendo entre si na procura de uma respiração quotidiana, podendo uma resposta não esperar ordeiramente pela deixa que a precede. O ritmo de Ricardo III é estonteante, entregue a uma velocidade de pensamento quase impossível, como se estivéssemos dentro de uma série televisiva com assinatura de Aaron Sorkin (Newsroom, Westwing). A partir do momento em que a peça arranca, diz o encenador, “já não há propriamente pausas para fumar cigarros ou para ir ao bar beber um café”. Toda a peça corre num desvario rumo à guerra que Ricardo quer empreender. À sua volta, uma saturação de personagens cuja vivacidade é desesperada tentativa de fuga da morte, tomadas por um nervosismo que apenas acelera a história e o seu fim.

Em ambas as peças existe uma clara gravitação em torno da autoridade e da manipulação, um paralelo constante entre o texto e o teatro, a ponto de em Ricardo III os actores lutarem pelo poder do protagonista e em Tempestade as personagens quase se fundirem até engrossarem uma voz única de coro. Ricardo, como qualquer figura que se impõe pela autoridade e pelo medo, é portador de um narcisismo que poderia ser graffito na parede de uma qualquer cidade: “Ricardo ama Ricardo”. O resto é conversa. Deslumbrante conversa.

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