A classe média nunca existiu

A classe média, essa categoria hoje tão evocada pelos políticos e pelos media, não tem uma identidade social reconhecível e ainda ninguém conseguiu definir as suas propriedades. Por isso, é um objecto polémico. Sem ter nada de próprio e sendo indefinida nos seus limites, existe como um nome de significado flutuante e moldável ao uso político que, em cada momento, se quer fazer dele. Não passa de uma fantasmagórica vacuidade erguida sobre os escombros dos antigos sujeitos sociais. A classe média corresponde ao que, nos termos de uma antiga linguagem que também declinou, se chamava pequena burguesia. Se hoje já não se chama assim, não é apenas por esse nome se ter tornado uma relíquia ideológica, mas também porque se expandiu e se tornou o modelo que conquistou o mundo, tendo absorvido as velhas classes e anulado as diversidades e os antagonismos. Walter Benjamin, numa pequena nota, datada de 1936, escreveu que “a pequena burguesia não é uma classe, é na realidade apenas uma massa”, comprimida entre duas classes inimigas. Essa massa compacta é hoje objecto de um discurso contraditório que revela bem por que tinha razão Benjamin ao negar-lhe a condição de classe: por um lado, diz-se que é nela que assentam as bases de toda a sociedade democrática; por outro, os populismos a que os media e os políticos acenam como um perigo iminente, dando ares de grande responsabilidade, são manifestações dessa massa que geralmente se define em relação a um chefe carismático ou em relação a uma “causa” de onde surgem os líderes grotescos, sempre dispostos a estimular o entusiasmo bélico. Mas o populismo não é um fenómeno de classe, é um fenómeno de multidão. E a sua explicação reside muito mais numa psicologia do que numa política. A tão incensada classe média, que não é uma classe, é a origem de outros males que nada têm a ver com o fenómeno populista: devemos-lhe também o crime de transformar em hábito e em norma tudo o que o mundo tem de mais grotesco. Não sendo a chamada classe média verdadeiramente uma classe, ela não se deixa reconhecer em características sociais comuns, nem numa “consciência de classe”, que o marxista Lukács da História e Consciência de Classe identificava com a consciência do processo histórico. Walter Benjamin, por seu lado, não exigia apenas que houvesse consciência de si para haver classe. Exigia também um outro factor: a solidariedade. Através da solidariedade, a consciência de classe torna-se activa e é então que a estrutura da massa se modifica e dela surge aquilo a que se chama “classe”, algo que não pode ser confundido com uma multidão gregária, com a massa indistinta pequeno-burguesa.

Ora, é precisamente este carácter activo que a pequena burguesia, dita hoje classe média, não tem. O que os indivíduos da classe média têm em comum são os interesses privados, nada mais. Por isso, quando se tenta identificar a putativa classe média recorre-se ao critério salarial. Em boa verdade não existe outro, tal como não existe hoje nenhuma burguesia que não seja assalariada. Mas o critério do salário introduz enormes falácias nas definições da riqueza e da pobreza. O mundo desta classe que nunca existiu é o mundo dos “colaboradores”. Essa etiqueta, que serve para tornar asséptico o mundo do trabalho, é a que melhor lhe convém. Um conhecido CEO da Fiat, Sergio Marchionne, resumiu assim as coisas : “Uma vez que as classes não existem, obedece ao patrão”. A classe média é de facto inexistente como classe e herdeira não ideológica de uma classe que nunca existiu, a pequena burguesia. Ela é uma ideia que só se formula em proposições negativas. 

Sugerir correcção
Ler 4 comentários