A cidade natural

Javier Marías percorre uma cidade que não vem nos guias de turismo, e disserta sobre o espaço da hipercidade, a cidade por excelência, Veneza.

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Fugindo à tentação de escrever sobre a turística Veneza, o autor enfia-se por vielas esconsas que só os locais conhecem

Os textos que compõem este volume do espanhol Javier Marías (n. 1951) foram, à excepção do último, publicados no jornal El País entre 22 e 26 de Agosto de 1988­. Por esta época (que coincidiu com a da escrita dos livros O Homem Sentimental e Todas as Almas), o escritor passava longas temporadas em Veneza, chegando a ter com a cidade uma quotidianidade rotineira que não era a do turista nem a do viajante ocasional; o último texto desta pequena colectânea foi escrito 20 anos depois dessa estada (também publicado no El País, em 2009), e durante esse intervalo de tempo de duas décadas Marías não visitou a cidade, mas esta nunca deixou de o acompanhar na sua memória, pois “o espaço é o verdadeiro depositário do tempo, do tempo ido”.

Javier Marías vai ao longo do livro, em capítulos curtos, divagando (muitas vezes com uma indisfarçável ironia) sobre assuntos como os venezianos, o arquipélago, a eternidade, o passeio nocturno, e o espaço ideal. Veneza, que chegou a ter 300 mil habitantes e hoje terá menos de 70 mil, é, para o veneziano, a Cidade por excelência, sendo o resto do mundo considerado “o campo”. Mas este não se move em toda a cidade, mas num espaço reduzido (mais ou menos aquele que os turistas lhe deixaram), é por isso que nos conta de uma idosa, natural de Veneza, que nunca passou pela praça de San Marco, recebendo notícias dela como se se tratasse de um lugar longínquo. São estes venezianos que Marías descreve como vestidos de uma maneira que parece que vão sempre para uma festa elegante, a qualquer hora do dia e em qualquer estação do ano, e as mulheres de pernas fortes de subirem tantas escadas e a caminharem sempre muito depressa.

Tentando fugir à tentação de escrever sobre o conhecido, sobre o muito de turístico desta cidade (que é “o único lugar do mundo” que o facto de não a visitar pode estragar a imagem final de uma pessoa por não ter cumprido “com as suas obrigações estéticas”), o autor enfia-se por vielas esconsas que só os locais conhecem, cafés e esplanadas onde os turistas não se sentam, praias e hóteis que não aparecem nos filmes, vistas que nenhum viajante vê. E ao fazê-lo compõe também uma imagem que se afasta do real e que se cola à ideia romântica de uma Veneza depositária de um tempo eternamente elegante; esta cidade de Marías, não sendo a dos turistas e viajantes, é a da aristocracia anacrónica e de uma classe média bastante abastada que em Agosto se desloca para as montanhas Dolomitas, que deve ser a maior distância a que se afastam da cidade, na sua “existência retirada”. São os mesmos que Javier Marías descreve como detentores de uma indiferença e falta de curiosidade pelo que não seja eles próprios e os seus antepassados e que não tem equivalente possível com a dos povos ensimesmados do norte da Europa. Não tendo, obviamente, estes textos propósitos de ‘guias turísticos’, funcionam de maneira quase perfeita como uma espécie de ‘ficção’ do real, que não o sendo poderia ser ou ter sido.

Mais intressantes do que os textos sobre a geografia da cidade e a natureza dos seus habitantes, é a prosa dedicada ao “espaço ideal”, onde o autor espanhol divaga sobre a ideia de “afastamento ideal” como condição de existência na cidade, em que cada fragmento da cidade é um todo inequívoco. Por isso, Veneza é um interior. A cidade por excelência, a hipercidade, no sentido de ser mais instintiva do que culta, mais natural mas sem dever nada ao acaso porque foi pensada, onde se percebe o passado mas também o futuro, pois nunca mudará, a não ser que um cataclismo a reduza a ruínas. “A verdade do espaço em Veneza deve medir-se pelo estado de ânimo, pelo caráter, pela ideia que emana de cada sestiere, de cada bairro, de cada canal e de cada rua, não pelos metros que o separam. Até a mesma pessoa vista em diferentes lugares varia, embora a sua função ou a sua actividade seja idêntica em todos eles.”

Javier Marías escreveu sobre uma cidade completa em si mesma, onde não existe a ideia de fora (todo o fora é o campo), que é suficiente, que se caracteriza por uma “falta de necessidade”, por uma “fragmentação ideal”, pois como escreveu Henry James, “… onde as vozes soam como nos corredores de uma casa, onde os passos humanos circulam como se contornassem as esquinas dos móveis”.

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