A capacidade de redenção

Retrato de um tempo e de um regime, o da URSS, feito por um dos maiores nomes da literatura russa dos últimos anos.

Foto
Buida cria um universo onírico nesta sua obra foto: Buida.RU

Nascido em 1954 no enclave russo de Kaliningrado, junto ao Mar Báltico, Iúri Buida é considerado um dos nomes maiores da literatura russa da era pós-soviética. Com um estilo cheio de vitalidade e de humor, as personagens de Buida movem-se num universo fantástico onde deambulam também os arquétipos dos seus próprios mitos: inimigos do povo soviético, militares conspiradores, gente alienada, artistas meio loucos, degenerados armados, religiosos que acreditam mais nas coisas terrenas do que nas do Alto, vários modelos domésticos de várias profissões. É também neste universo (quase apetece usar a expressão “de realismo mágico”, mas que ficaria aqui desadequada pelo peso que tem como catalogadora de um certo registo literário) que as personagens do romance Sangue Azul Gelado se movem.

É um universo onírico, onde a realidade parece ultrapassar a imaginação, como se de um espectáculo de títeres se tratasse. “O bêbado Lumínium foi quem levou o corpo para o hospital no seu carro de mão. Era o mesmo que usava para transportar sacos de açúcar, carvão e esterco para as velhotas, ganhando assim uma garrafa de vodca ou, no mínimo, um copo de aguardente caseira.” Ou mais ainda sobre esta personagem: “Sabiam que o bêbado Lumínium se gabava de ter um membro viril provido de unha, particularidade que assegurava o seu infalível êxito entre as mulheres; na realidade só triunfava com Mumu, a surda-muda empregada dos banhos públicos.”

Em Sangue Azul Gelado narra-se partes da história de vida de Ida Zmoiro, como se se recompusesse um mosaico a partir de fragmentos. O narrador é um jovem primo. Ida é uma idosa que vive sozinha no lugar de Chúdov (informa o tradutor em nota que esta palavra significa “milagres”), perto de Moscovo, mas que parece guardar ainda uma ambiência medieval, quase carnavalesca. Toda a história serve para responder à pergunta, “quem foi afinal Ida Zmoiro?” Sabe-se logo nas primeiras páginas que em tempos ela foi uma actriz de teatro e de cinema, com muito êxito e até vencedora de um “prémio Estaline”, mas que o ditador, por razões mais ou menos obscuras, fez “desaparecer”. Ida vive agora longe dos palcos e dos ecrãs, mas não desistiu da vida depois de ter sido obrigada a deixar de ser estrela. Num ambiente cinzento e hostil – uma espécie de metáfora da vida nos anos da URSS – Ida Zmoiro teve a capacidade de fazer a sua própria redenção, recitando Shakespeare para os doentes do hospital e criando na aldeia uma escola (entre aulas de teatro e dança) para meninas – a quem chamavam “pombas” por serem elas as portadoras de uma pomba aquando dos funerais. É o desaparecimento de algumas destas raparigas, suas alunas, que vai trazer o tom de mistério ao começo do romance, com a morte de Ida a ser relacionada com o facto.

A realidade na escrita de Buida parece ser feita de truques extravagantes, uma espécie de espectáculo de ilusionismo e de magia feito diante dos leitores, numa Chúdov mágica onde se diz que o poço da praça conduz “directamente ao inferno”. A aldeia parece ser feita de histórias, de acontecimentos bizarros, de personagens singulares que por lá se passeiam de modo quase surreal, e a velha Ida Zmoiro actua como um contraponto a uma realidade quase mítica, que foi construída sob uma ditadura férrea de onde só se escapa pela alienação mais ou menos consciente; por isso, ela parecia fazer questão de se dedicar “à destruição, metódica e impiedosa, de todos esses mitos, contos de fadas e mentiras descarada”. O preço já ela o tinha pago, mas de vez em quando continuava a ser chamada a Moscovo, e à compaixão mostrada pelas vizinhas no seu regresso respondia sempre da mesma maneira: “a felicidade engorda”.

Este romance foi inspirado pela biografia da actriz russa Valentina Karavàeva e serve de retrato de um regime onde um qualquer indivíduo, mesmo sendo famoso no mundo do espectáculo, pode ser rapidamente apagado de todos os registos da memória. Na escrita de Buida, a morte, as ameaças e os segredos estão sempre ao virar de uma esquina, são esses os vínculos ao passado, que são mostrados como inseparáveis de questões como a construção da identidade; como se isso servisse acima de tudo para ir ajustando a sociedade a uma nova realidade. Mas Sangue Azul Gelado é muito mais do que o retrato de um tempo e de um regime, é acima de tudo um grande exercício narrativo feito com muito talento e originalidade.

Sugerir correcção
Comentar