A cadeira de Mohammad Rasoulof vai ficar vazia no DocLisboa?

O filme de encerramento do Doc será um thriller iraniano sobre a perseguição do regime à elite intelectual do país. O seu realizador faz parte do júri mas está detido pelas autoridades.

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"Manuscripts Don’t Burn"

O cineasta iraniano Mohammad Rasoulof foi convidado para integrar o júri da competição internacional do próximo DocLisboa (24 de Outubro a 3 de Novembro), mas a direcção do festival não pode garantir a sua presença em Lisboa, nem como jurado nem como autor do filme de encerramento, Manuscripts Bon’t Burn. Um comunicado do Doc informava ontem que Rasoulof foi detido pelas autoridades iranianas no dia 19 de Setembro em Teerão, que lhe confiscaram o passaporte: “Encontra-se sob interrogatório e aguardam-se mais notícias.”

Em Dezembro de 2010, tinha sido detido juntamente com Jafar Panahi (nome e “caso” que entretanto se tornou mais mediático) e 15 outras pessoas por estarem a apoiar, através do projecto de um filme, a oposição “Verde” de Mir-Hossein Mousavi e dessa forma conspirarem contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad e contra a República Islâmica. Foram banidos da actividade de realizadores (proibidos de filmar e de saírem do país durante 20 anos) e condenados a seis anos de prisão. Pena que no caso de Rasoulof, que ainda esteve encercerado 17 dias e depois libertado sob fiança, foi depois reduzida a um ano — aguardando fora da prisão a decisão sobre o apelo entretanto interposto.

Contudo, nem ele nem Panahi deixaram de filmar, em segredo e à margem da proibição. E a verdade é que na edição de 2011 o Festival de Cannes exibiu, chegados clandestinamente ao Ocidente, This Is Not a Film, que Jafar Panahi rodou no seu apartamento onde se encontrava sob prisão domiciliária (filme exibido em sessão especial), e Goodbye, de Rasoulof — exibido na secção Un Certain Regard. História de uma advogada dos direitos humanos obrigada a separar-se do marido, exilado no interior do Irão devido às suas actividades como jornalista, consideradas subversivas, Goodbye seria premiado nessa secção, mas foi a mulher de Rasoulof a ter de ir a Cannes receber o prémio uma vez que o marido não podia sair do Irão. Já este ano, com a selecção, na mesma secção do festival, de Manuscripts Don’t Burn, o realizador esteve em Cannes, naquela que foi a sua primeira aparição pública desde o dia em que foi preso. E com que filme...!

Rodado em segredo, sem genérico para não comprometer actores e técnicos envolvidos, como se se tratasse de uma obra “anónima”, Manuscripts Don’t Burn, que inicialmente foi anunciado para Cannes com o título, precisamente, de Anonymous, é uma ficção que condensa história(s) verídica(s) da perseguição à dissidência e eliminação dos críticos do regime — em entrevistas na altura de Cannes o realizador situava esses acontecimentos no final dos anos 80.

Confronto directo

O cinema de Rasoulof vinha sendo destacado pela sua carga “alegórica”, mas Manuscripts Don’t Burn, o sexto filme do realizador, aparece investido de uma coragem de explicitação e de um potencial de confronto directo que são impressionantes. Sob a capa de “filme de género”, de thriller, retrata uma sociedade social e culturalmente fracturada, ensopada em denúncia, com uma máquina em marcha para eliminar a elite intelectual e em que a paranóia sinaliza os gestos do quotidiano.

Uma espécie de pesadelo acordado, como naquele cinema, apropriadamente chamado de “paranóico”, que a América dos anos 70 gloriosamente produziu — a memória que aqui se acorda é, concretamente, a das obras-primas de Sidney Pollack e Alan Pakula, respectivamente, Os Três Dias do Condor (1975) e A Última Testemunha (1974).

Rasoulof foi o prémio FIPRESCI, da associação internacional de críticos de cinema, em Cannes 2013. O cineasta disse ter querido fazer um filme sobre “os episódios negros da história intelectual do Irão”. Mas, produtor do seu filme, nunca quis desvendar como conseguiu filmar em segredo sem ser interceptado pelas autoridades. Ironizou até: “Deixem-me manter esses procedimentos em segredo, talvez os queira utilizar numa próxima rodagem.”

O comunicado do DocLisboa nota que ainda este mês Rasoulof reconheceu razões para optimismo quanto a ventos de abertura do regime iraniano, depois do governo ter autorizado o principal sindicato da indústria cinematográfica do país, a Casa do Cinema, que reúne cinco mil profissionais, a retomar as suas actividades — considerando que a sua dissolução, em 2012, fora um acto político. A Casa do Cinema fora encerrada em 2012, acusada de ter suprimido nos seus estatutos uma menção de apoio à revolução nacional e de apoiar cineastas detidos por críticas ao regime e colaboração com os media estrangeiros.

A decisão de autorizar as actividades do sindicato aconteceu pouco mais de um mês após a tomada de posse do Presidente Hassan Rohani, que prometera, em campanha eleitoral, mais liberdade no domínio da cultura. A eleição de Rohani foi um sinal de abertura do regime para dentro e para fora e o arranque, esta semana, das negociações directas com os Estados Unidos sobre o programa nuclear de Teerão é um grande teste a essa nova postura do Irão.

Manuscripts Don’t Burn está programado para a Culturgest, dia 2 de Novembro, sábado, às 21h.     
 
 
 
 
 

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