A arte de garimpar literatura do Brasil até à China

Como se encontram novos autores num mercado em crise? E o que é que um autor tem de fazer para conseguir publicar pela primeira vez? Esta é pelo menos uma parte da resposta: a Internet passou a ser essencial no circuito da edição mundial.

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É verdade que os jovens chineses raramente lêem livros impressos ou de capa dura, mas isso não quer dizer que não leiam STRINGER/REUTERS
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Carol Rodrigues EDUARDO MARTINS
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Felipe Franco Munhoz EDUARDO MARTINS
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Marcelino Freire EDUARDO MARTINS
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Shen Haobo EDUARDO MARTINS

Os escritores Carol Rodrigues, Felipe Franco Munhoz e Marcelino Freire vieram ao Festival Literário de Macau  Rota das Letras falar sobre a nova literatura brasileira. Viajaram 30 horas para chegar de São Paulo a Macau. Com poucos dias na cidade, tudo ainda lhes parece um grande sonho, não dormem direito, acordam a meio da noite.

“É tudo muito estranho, parece que a realidade ficou lá longe e isso é muito criativo. Estamos produzindo nas madrugadas. Com certeza que vamos levar muito disso para o Brasil. A última autora brasileira que veio aqui foi a Andréa Del Fuego [Prémio José Saramago 2011] e o último romance dela [As Miniaturas] é inspirado em Macau, todo o cenário foi construído aqui”, conta Carol Rodrigues, 30 anos, autora do premiado livro de contos Sem Vista para o Mar. Ainda os brasileiros não tinham posto os pés na cidade e já estavam a criar pensando nela. Desde Fevereiro que têm vindo a publicar micronarrativas no jornal macaense Ponto Final e também no site Antessala das Letras, de que Felipe Franco Munhoz, 26 anos, é o coordenador.

O Antessala das Letras nasceu em 2014 “por causa da grande dificuldade” que os novos autores brasileiros têm para “ingressar no mercado literário” e por sentirem que havia falta de “um espaço para publicação”, explica no Festival Literário de Macau o autor do romance Mentiras, inspirado na obra de Philip Roth. É um site onde autores consagrados, “com muitos anos de estrada”, recomendam escritores, jovens ou não, em início de carreira. 

O primeiro texto que o Antessala das Letras publicou foi um conto de Carol Rodrigues. Vinha recomendada por Marcelino Freire, com quem tinha feito uma oficina de escrita. Acabou por conseguir publicar o seu primeiro livro em 2014, um volume de contos, “sobre fugas, sobre estradas, sobre um Brasil profundo e desconhecido" com o qual venceu, na categoria respectiva, os importantes prémios Jabuti e da Fundação Biblioteca Nacional em 2015. 

A inspiração para este livro nasceu da tomada de consciência de que no Brasil o sistema de transporte é todo rodoviário, “e isso é muito estranho a muitos níveis”, e também veio de uma personagem que a encanta e que é muito brasileira: “o caminhoneiro, que viaja pelas estradas muito longas, durante muito tempo, colhendo essas histórias e tomando rebite, uma droga para ficar acordado”, explica a autora. Sem Vista para o Mar foi publicado numa editora pequena e é a própria Carol Rodrigues que o divulga, vende e luta por ele. 

“As editoras grandes estão meio que acabando no Brasil. É o mesmo que aconteceu com as gravadoras. Uma grande editora, a Cosac Naify, infelizmente fechou no ano passado; fazia os livros mais lindos do país. Uma característica actual é uma ascensão massiva de editoras independentes, de publicação pelos próprios autores, alguns livros até não têm ISBN. Essa produção paralela está crescendo de mais, e isso está trazendo uma diversidade muito interessante, a gente só tem a ganhar”, acrescenta Carol Rodrigues. 

Felipe Franco Munhoz tem outro percurso mas também foi sendo ajudado por Marcelino Freire à medida que ia fazendo o seu romance Mentiras, também editado numa editora pequena. Tudo o que ele queria era escrever um livro que tivesse bons diálogos. Alguém o aconselhou a ler Deception, de Philip Roth (Engano, na tradução portuguesa da D. Quixote), cuja acção é feita de diálogos. “Estava num processo maluco de achar a forma de escrever o melhor diálogo evitando também a oralidade, esse diálogo que vai ser lido e não é uma simulação do que está sendo falado. Então chegava em casa e tentava transformar todas as conversas com pessoas reais em ficção”, explica. Foi assim que nasceu este livro que já lhe valeu um convite da Philip Roth Society para ler excertos nas comemorações dos 80 anos do escritor norte-americano, em Newark, nos EUA, em Março de 2013.

Ninguém cala um poeta

Marcelino Freire, escritor de 48 anos, criou em 2006 a Balada Literária, um festival literário em São Paulo cujo propósito é tirar a literatura das estantes e levá-la para as ruas de São Paulo. Para se “celebrar a literatura sem frescura”, costuma ele dizer. E se tanto Carol como Felipe lhe agradecem a ajuda a encontrar um caminho, o autor de Contos Negreiros, Prémio Jabuti 2006, e de Nossos Ossos, Prémio Machado de Assis 2014 de Melhor Romance, tem igual ligação com muitos outros autores brasileiros. 

Um dos seus últimos projectos chama-se Quebras – Uma viagem Literária pelo Brasil, e foi realizado com o apoio do Rumos Itaú Cultural: além de um site, resultou num livro. Marcelino Freire viajou acompanhado pelo jornalista e fotógrafo Jorge Filholini por 15 capitais brasileiras fora do grande eixo São Paulo-Rio de Janeiro para descobrirem novos autores e fazerem um “mapeamento” do que está a ser produzido em lugares tão longínquos como Palmas, em Tocantins, a mais jovem capital do Brasil (26 anos), na Boa Vista ou em Teresina, capital do Piauí, no Nordeste. 

“No site estão entrevistas a escritores que fui encontrando pelo caminho. A verdade é que ninguém cala um poeta, em lugares onde não existe mercado editorial nenhum, onde há uma enorme dificuldade para se publicar um livro. No Macapá, a capital do Amapá, tem muito grupo de poesia falada”, conta Marcelino Freire. “Quando perguntei porquê, disseram-me que era uma maneira de se publicar, porque não tem como publicar em papel: ‘Por isso a gente torna público na fala’.”

Se Marcelino tivesse de escolher um nome de entre todos os escritores que encontrou nessa viagem, escolheria o de um poeta “de extrema grandeza, um dos grandes poetas brasileiros, que mora em Belém do Pará, tem livros traduzidos para inglês e para espanhol e no Brasil ninguém sabe quem é”. Chama-se Antônio Moura, mas obviamente que o escritor aconselha que se que visite o site e se vejam todos os outros que estão lá representados.

Na China capitalista

Na sessão em que se falou da literatura contemporânea brasileira, Marcelino Freire disse que por estes dias, enquanto estava a passear por Macau e por Hong Kong, viu várias vezes o Nordeste do Brasil. “Naquelas feiras livres que cortam a cidade ultramoderna de Hong Kong, naquelas senhoras vendendo pastéis, naqueles senhores regulando relógios que estão vendendo antiguidades, vi muitas vezes a minha tia ou um tio meu.”

Ele, que nasceu no Sertão de Pernambuco, reconheceu também no hotel onde está hospedado a panqueca que a sua mãe fazia para substituir o pão. “Comi, matei a saudade da minha mãe e matei a fome, porque essa panqueca no Nordeste tem o nome de mata-fome”, diz o escritor que também já encontrou essa panqueca em Havana. “Mas aqui no hotel em Macau tem uma máquina que você você aperta OK e sai a panquequinha da minha mãe [gargalhadas na sala].São culturas diferentes, mas a raiz é a mesma, a teimosia é a mesma. Estar aqui de alguma forma é também estar na minha terra." 

A história da panqueca serve de alegoria ao que se passa no mercado editorial deste lado do mundo. Também aqui a Internet é o meio que muitos jovens autores têm de publicar pela primeira vez e de serem descobertos pelos editores tradicionais. Mas, tal como como na história da panqueca, a máquina aqui é muito mais sofisticada e está em próspero desenvolvimento.

Foi esta a ideia que o poeta chinês, Shen Haobo, que também é um editor de sucesso (a sua empresa tem uma escala grande e é influente na China continental) defendeu na Rota das Letras. “É complexo porque pode dizer-se que sou quase um editor capitalista”, explicou na sessão sobre A arte e os desafios de publicar na China continental e em Taiwan.

Nos últimos anos, o mercado editorial na China mudou, e se em Taiwan o sector foi afectado pela crise, o mesmo não se pode dizer da China continental, onde a indústria está a prosperar. Uma das razões para isso, como explicou este editor de Pequim, são as plataformas on-line, os microblogues e as redes sociais chinesas. 

Os jovens autores mantêm as suas próprias plataformas onde divulgam o seu trabalho. E um editor como Shen Haobo, quando procura novos autores para publicar, tem em conta o número de fãs que esse autor tem e se estes são ou não participativos. Se for o caso, o autor vai certamente trazer lucros, o que facilita o trabalho do editor, que depois de analisar o enredo define a estratégia para o lançamento em ebook ou em formato impresso. “Se os seus fãs são reais e autênticos não será difícil venderem muitos livros. Este é o conceito do negócio. Eu próprio como poeta tenho uma plataforma. Sei que se não der atenção à plataforma não vendo, mas se der atenção vendo muito.”

Antigamente, um editor não podia prever “o valor de um livro”, o seu desempenho no mercado. Mas com a popularidade da Internet isso mudou. Claro que não deixa de haver casos em que Shen Haobo decide que uma determinada obra deve ser publicada porque tem alto interesse literário, apesar de não ser popular.

Actualmente as tendências literárias na China continental são os livros de humor ou de banda-desenhada. “Os comics são muito populares, como nunca tinham sido até aqui, e há um grupo de escritores deste género muito influente na Internet”, explica Shen Haobo, respondendo a uma pergunta do PÚBLICO. “No ano passado paguei muito dinheiro pelos direitos de uma jovem autora que é muito popular no Twitter chinês. Por que é que ela ficou muito popular? Todos os dias publica um post com uma imagem do cão e do gato e estes dois tornaram-se no cão e no gato mais famosos da Internet. Recebeu seis milhões de renminbi e foi só o pré-pagamento. Tenho outra autora importante na banda-desenhada que também tem como personagem um gato e conseguiu ter mais de três milhões de seguidores. O marido dela trabalhava comigo e despediu-se para criarem a sua própria empresa. Não precisam de mais ninguém, conseguem sozinhos ganhar dinheiro suficiente com aquele gato." 

É verdade que os jovens chineses raramente lêem livros impressos ou de capa dura, mas isso não quer dizer que não leiam. Sobretudo na Internet, onde a literatura fantástica, mas também a que está relacionada com artes marciais ou com histórias de amor em tempos antigos, é muito popular. “Porquê? Porque a nossa vida é entediante, temos dias difíceis e à noite, quando as pessoas chegam a casa, costumam ler livros que não necessitem de tanto esforço”, defende o editor, lembrando que actualmente na China as séries de TV têm muita popularidade e estes autores também fazem dinheiro com os seus conteúdos, aplicando-os a outros meios. “Os telefones móveis vieram mudar hábitos na China. As pessoas que não tinham hábitos de leitura passaram a ter. Primeiro liam só alguns parágrafos, mas depois tiveram desejo de ler mais e estão a tornar-se leitores ávidos. Acredito nisso e que o mercado editorial na China tem imenso potencial”, defende Shen Haobo.

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

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