A arte como construção democrática

Uma ideia de crítica é o fio que une os textos reunidos em livro.

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Fernando Pernes: figura determinante na arte portuguesa FOTO: Hernani Pereira

Fernando Pernes é uma figura notável e determinante na arte portuguesa do final do século XX. Não só porque a ele se devem os primeiros passos que levaram à constituição do Museu de Serralves no Porto (de que foi o primeiro director artístico), mas também porque o seu pensamento sobre a arte e os artistas é um importante contributo para a formação do nosso conhecimento acerca da arte que ficou expresso não só nas exposições de que foi curador, mas também nos textos que escreveu e nos cursos que orientou e que estes dois importantes volumes vêm testemunhar.

São muitos os elogios à sua cultura, inteligência, singularidade e espírito que fez nascer um dos mais significativos museus portugueses. O seu contributo para o crescimento do tecido cultural português não se esgota na habilidade institucional com que conseguiu juntar meios, pessoas e recursos para fazer nascer Serralves, mas o elemento decisivo é, como escreve von Hafe Pérez, o modo como Fernando Pernes conseguiu, através das suas múltiplas actividades de ensino, ensaísta, crítico de arte, curador e director artístico, criar plataformas e instrumentos para uma nova legibilidade da arte mais recente: podem mencionar-se as exposições 10 Contemporâneos de 1992 e feita com Alexandre Melo ou Imagens para os anos 90 (1993) comissariada por Miguel von Hafe Pérez, exposições decisivas para a passagem para um novo tempo e um novo entendimento da arte portuguesa contemporânea. E foi também a ideia da criação de novas modalidades de ver e perceber arte que o levaram a procurar concretizar um museu não conservador, mas um museu entendido como “foco dinâmico, não consagrador de heranças elitistas mas instaurador do que na poética surrealista se pretende a ‘crítica permanente do quotidiano’” (p.20).

Esta crítica permanente do quotidiano que em 1978 Pernes assume como conceito museológico não tem a expressão do novo realismo (especulativo e materialista) a que assistimos no séc. XXI, mas trata-se de exigir que a arte seja assumida como espaço de liberdade e de crítica, ideias que estão na base de todos os textos que os dois volumes publicados pelo Museu de Serralves agora disponibilizam. Uma ideia de crítica (que no caso de Pernes foi muitas vezes polémica, forte e apaixonada) constitui o fio que une todos os textos e as aulas agora tornadas livro.

No volume dedicado aos seus textos críticos os motivos são variados: são relativos a exposições de artistas como João Vieira, António Areal, Eurico Gonçalves, Francis Bacon, Ana Vieira, etc., a entrevistas dadas pelo próprio Pernes ou a textos de âmbito mais ensaístico como o Da arte de ver arte, Os artistas e a cidade, Sobre arte e política, e textos de intervenção escritos para jornais. Além da extrema erudição e cultura revelada, a sua maior preocupação é dotar o leitor e o visitante de exposições de ferramentas para pensar a arte e as suas consequências. No texto Sobre arte e política (1970) Pernes torna-se claro que a relação arte

política é fundamental não na medida em que a arte pode ilustrar e tornar comunicativas certas ideologias, mas porque os projectos artísticos são, segundo Pernes, importantes contributos para o desenvolvimento de uma cidade humana: “depois da cidade de Deus, descendida para a cidade ideal do renascimento, após a cidade-corte, a cidade iluminista e senhorial, tomamos o empenho na cidade dos homens, que não deve ser utopia mas a realização concreta, concebível pelo trazer à exigência e experiência colectiva enquanto se remeteu às imagens de museus ou templos das diversas crenças ou sistemas ideológicos. Lutar por esse destino é o meio mais autêntico de uma democratização artística […]. Trata-se de um projecto artístico. — É evidente tratar-se de um destino político. Vamos discuti-lo?” (p.64) Importa sublinhar a maneira como os projectos artísticos são importantes alicerces na construção de uma cidade humana, mas como a injunção à discussão com que termina o texto é um dos motes permanentes do trabalho de Pernes.

A discussão que os projectos artísticos promovem — e que em última instância têm o seu lugar natural no museu — fazem parte de um processo de democratização da cultura. Esta democratização é para Pernes um combate reflexivo que ambiciona aquilo a que ele chama a transformação redentora das sociedades. Um combate que Pernes leva a cabo, como se pode perceber nestes textos, através de criação de tensões e de choque entre os valores tradicionais da história da arte e os novos meios de comunicação visual. Isto é, para Pernes a arte deve ser entendida, discutida, experimentada no contexto do novo universo das imagens. Contexto este que lhe serve como o locus para onde se deve expandir a cultura artística e a educação visual. A este movimento chama Pernes, num texto de 1979, um empenhamento numa frente necessariamente democrática (p.144). Mas esta exigência de uma arte enquanto elemento reflexivo e construtor de uma sociedade mais justa e democrática, e não uma arte para elites como ele também afirma, não elimina o elemento misterioso que as obras de arte têm no seu centro. “Deixa-se o aviso: não há quaisquer regras ortodoxas para aprender a ler ou a traduzir o indizível de que a arte é a revelação.” (p.273) É, portanto, exigência de discussão da arte no espaço de uma cidade humana não anula a indizibilidade e o mistério que é a matéria primeira do trabalho dos artistas. E é esta dupla filiação que o trabalho teórico de Pernes se esforça por articular.

O outro volume publicado reúne as aulas de um curso sobre arte moderna e contemporânea dado por Fernando Pernes entre 1997. O primeiro módulo teve lugar entre 29 de Janeiro e 16 de Julho, interrompido nas férias e retomado entre 1 de Outubro e 28 de Janeiro de 1998. Um curso que, como mostra Lucia Almeida Matos, reflecte na perfeição o “seu entendimento da arte como manifestação cultural e portanto simultaneamente consequência e agente das condições políticas e sociais; um olhar educado mas também intuitivo que se revela nas associações formais, temáticas ou conceptuais entre obras de várias naturezas, autores e geografias.” (p.10)

As suas aulas, distintamente dos textos críticos e ensaios, dão forma a uma compreensão mais vasta do que é a arte, sempre feita a partir de um confronto directo com obras de arte, arquitectura e contexto intelectual em que nascem. As aulas começam com uma importante apresentação do carácter problemático de definição de arte, avançando para a problematização da distinção moderno

contemporâneo. A maior parte das sessões são dedicadas à análise de obras específicas de maneira a mostrar como é que a história da arte é uma história do mundo e do modo humano de lidar com a morte, o amor, o futuro e, sobretudo, são expressões do esforço humano de construção de uma sociedade democrática.

A reunião destes textos e aulas, para além de ser um contributo fundamental (e raro) para a caracterização e história do pensamento crítico português, permite formar uma visão de conjunto do pensamento de Pernes que revela que, através das suas múltiplas facetas de intelectual, curador e activista político, está alguém que encontrou na arte o meio para a construção de uma sociedade mais desenvolvida, inteligente e democrática.

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