A arqueologia náutica e subaquática portuguesa está a naufragar?

Depois de anos de desinvestimento e de diluição na máquina da Direcção-Geral do Património, a situação é "de emergência". Em causa estão a preservação de um património identitário e o cumprimento de obrigações internacionais. E, a curtíssimo prazo, há 14 mil bens móveis que podem ficar sem casa.

Foto
Piroga do Rio Lima, com mais de 2000 anos, a ser transportada do CNANS, em Belém, para o Mercado Abastecedor da Região de Lisboa, em Março de 2010 RUI GAUDÊNCIO

A metáfora é demasiado fácil e, talvez por isso, se possa dizer inevitável – a arqueologia náutica e subaquática portuguesa parece estar a afundar. Chegou a ter um centro de investigação só para ela dentro de um instituto que tratava em exclusivo da arqueologia e cujas competências hoje, depois de várias siglas e reestruturações, estão a cargo da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), o maior dos organismos do Ministério da Cultura. O que é que se passou de 1997, ano de criação do Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), para cá? O que é feito da equipa deste organismo e dos projectos em que estava envolvida? Para onde foi o espólio entretanto recolhido nas suas escavações?

Nem tudo se perdeu, é certo, mas de uma estrutura que chegou a ter mais de 20 pessoas, ainda que na sua maioria avençados e bolseiros de investigação, um laboratório de conservação e restauro, vários projectos científicos em curso e uma frota a funcionar já pouco resta. Até o nome desapareceu da orgânica da DGPC (continuamos a usá-lo para efeitos práticos e porque os arqueólogos teimam em fazê-lo).

Hoje são três os funcionários afectos a esta área (um arqueólogo e dois técnicos auxiliares). Os sete barcos que o CNANS ainda tem não podem ser usados (uns por falta de licenças, outros por falta de vistorias, equipamento ou manutenção). E o único arqueólogo que ali trabalha não tem como mergulhar (mandam as regras mais elementares de segurança que debaixo de água nunca se esteja sozinho).

O que o Estado tem no seu caderno de encargos no que toca a esta área, no entanto, não se alterou – continua a ser da sua competência a salvaguarda, o estudo e a promoção do património náutico e subaquático que se situa em território nacional, na zona económica exclusiva (uma das maiores do mundo) e na plataforma continental. E isto sem esquecer as embarcações naufragadas nas águas de quase 60 países que, tendo pavilhão português, são tecnicamente território nacional (neste lote estão, por exemplo, as descobertas no sultanato de Omã). Ao todo são mais de 7000 sítios arqueológicos, embora a esmagadora maioria esteja apenas referenciada em termos documentais.

Depois de o PCP ter defendido recentemente na Assembleia da República um reforço dos meios de funcionamento do CNANS, o PÚBLICO foi ouvir arqueólogos capazes de fazer um retrato do que é hoje a náutica e subaquática em Portugal. E deparou-se com “um cenário de emergência” que a todos preocupa e que põe em causa o investimento e o trabalho realizado, sobretudo nos finais da década de 90 e no começo da seguinte. Pelo meio há uma situação a que a tutela tem de dar resposta já – o centro tem de deixar rapidamente os 3200 m2 que ocupa desde Junho de 2010 no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL), em São Julião do Tojal, Loures, e onde estão instaladas as reservas arqueológicas, lado a lado com o laboratório de conservação e restauro que não funciona há mais de um ano por falta de técnico (há já um concurso aberto para o substituir) e um importante arquivo.

O senhorio denunciou o contrato, que termina a 10 de Junho próximo, e informou em Dezembro o Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliações Culturais (GEPAC), o organismo que o assina em nome do Ministério da Cultura, que tenciona arrendar aquele espaço a outra entidade. Passado meio ano, o CNANS ainda não tem as malas feitas e o MARL não mudou de ideias. Para onde vão os 14 mil bens móveis que o centro tem à sua guarda, com destaque para as pirogas com mais de dois mil anos que foram descobertas no Rio Lima, que estão entre as mais antigas embarcações que se conhecem em todo o mundo, e os fragmentos e cerâmicas de uma embarcação quinhentista que resultaram de escavações na Ria de Aveiro? Para onde vão os vestígios e materiais da nau Nossa Senhora dos Mártires, que regressava da Índia com um carregamento de pimenta e naufragou ao largo do Forte de Julião da Barra, em 1606? E os do San Pedro de Alcantara, navio espanhol que viajava do Peru para Cádis e se afundou perto de Peniche em 1786, naufrágio em que terão morrido quase 130 pessoas, muitas delas escravos que viajariam no porão, presos com grilhetas de ferro?

Para onde vai o CNANS?

O PÚBLICO procurou saber junto do Ministério da Cultura onde vai passar a funcionar o CNANS e por que razão passaram seis meses sem que se tivesse encontrado uma alternativa ao MARL. O gabinete do ministro Luís Filipe Castro Mendes remeteu qualquer esclarecimento sobre a arqueologia náutica e subaquática para a DGPC, que se limitou a dizer, num brevíssimo email e sem direito a mais perguntas, que “a presença do CNANS no MARL sempre foi considerada uma situação provisória” e que “está a analisar diversas soluções de mudança” que permitam acolhê-lo “em condições adequadas à natureza da sua actividade”.

O CNANS foi para o mercado abastecedor pensando que a estadia seria, de facto, provisória, até que a instalação definitiva estivesse garantida. A mudança para aquele armazém a 12 quilómetros do centro da cidade foi feita quando a arqueologia foi forçada a deixar o espaço que ocupava na Avenida da Índia, em Lisboa, para abrir caminho à construção do novo Museu Nacional dos Coches. A transferência para o MARL começou em Novembro de 2009 e em Março não estava ainda concluída.

“Creio que não chegou a meio ano, mas foram pelo menos quatro meses de mudança”, diz ao PÚBLICO Jacinta Bugalhão, arqueóloga dos quadros da DGPC, que à data seguiu de perto o processo.

Agora, Rui Paulo Figueiredo, presidente da sociedade a que pertence o mercado abastecedor de Lisboa, a SIMAB, espera que o centro de náutica saia “o quanto antes”, cumprindo o contrato que diz que o arrendamento termina dentro de 15 dias. “O MARL fez saber por mais do que uma vez ao GEPAC que estava disponível para encontrar, dentro do MARL, soluções adequadas, permanentes ou provisórias, para a reinstalação do CNANS. O que sempre dissemos é que, como estava, não podia ficar”, diz ao PÚBLICO este responsável do MARL. “A nós não nos interessa perder receita, mas também não podemos aceitar situações que são altamente irregulares.”

Rui Paulo Figueiredo refere-se ao facto de a Cultura (além do CNANS, o MC tem ali, por exemplo, um depósito de equipamento de escritório e informático que deixou de ser necessário depois da última reestruturação da administração central) e as outras duas empresas com instalações no mesmo módulo de armazéns – a Science4you e a Torrestir – estarem a trabalhar num espaço onde foram feitas obras ilegais.

“Ao longo dos anos estas entidades fizeram uma série de obras para se adaptarem ao espaço e para garantirem as condições necessárias às suas actividades, dando origem à realidade que hoje existe e que não corresponde à licença de utilização de 2010. Não podemos permitir que isto aconteça”, diz o actual presidente do MARL, em funções desde Julho de 2016. Em causa está, acrescenta, a segurança de pessoas e bens.

O MARL propôs ainda no ano passado às três entidades que dividiam o armazém que participassem dos custos da adaptação, mediante uma redução da renda mensal, o que o GEPAC recusou de imediato por falta de verbas. A Science4you disponibilizou-se a fazê-lo e vai ficar com o espaço que pertencia ao CNANS, mal estejam terminadas as obras que devem arrancar esta semana, na parcela do armazém que já lhe pertence. “A obra total deverá estar terminada até ao final de Julho, início de Agosto”, explica Figueiredo, optando por não fixar uma data específica para a saída do centro de arqueologia. “Compreendemos os constrangimentos de dinheiro e de tempo da Cultura e gostávamos que ficassem, mas não podemos esperar mais.”

Segundo o presidente do MARL, pelos 3200 m2 o MC paga cerca de 17 mil euros por mês, o que significa que o valor total das rendas no período da vigência do contrato (de 11 de Junho de 2010 a 10 de Junho de 2017) rondará 1,4 milhões de euros.

“O que não teria feito o CNANS com quase um milhão e meio para investir em trabalho científico?”, interroga-se a arqueóloga Jacinta Bugalhão, acrescentando que a “situação gravíssima” que se vive na náutica e subaquática há já vários anos, “altamente lesiva para o património”, é um reflexo da “lenta asfixia” do serviço de arqueologia no geral, que perdeu identidade, autonomia, agilidade e capacidade de resposta ao ser diluído na máquina da DGPC.

“Hoje se aparecer qualquer coisa no nosso mar ou num dos nossos rios que exija intervenção de arqueólogos, a Cultura não tem capacidade para ir lá sozinha. E já teve. Nos últimos anos, não perdeu só dinheiro, o que é compreensível, com a crise; perdeu recursos humanos em que o Estado investiu muito e perdeu sobretudo um foco – perdeu a vocação que tinha nesta área e que fazia com que visse a ciência como a chave para valorizar a arqueologia”, acrescenta a título pessoal esta técnica da divisão de bens culturais da DGPC, a que pertence hoje esta área, depois de em 2006 ter sido extinto o Instituto Português de Arqueologia, que nasceu em 1997, na euforia da criação do Parque do Côa, elevado a património mundial no ano seguinte.

12 anos sem escavações

A formação de futuros arqueólogos de náutica e subaquática é precisamente um dos aspectos que mais preocupam José Bettencourt, investigador do Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Este arqueólogo que está habituado a  mergulhar e que trabalhou no CNANS logo após a sua criação, saindo para integrar o centro da Nova em 2005, lembra que há 12 anos que não há uma escavação subaquática planeada e sistemática em Portugal continental: “As universidades formam pessoas mas, como não têm meios para fazer trabalho de campo quando se trata de subaquática, não há formação no terreno. E é no terreno que qualquer arqueólogo aprende a sério.”

As universidades Nova e dos Açores, por exemplo, continuam interessadas em investigar nesta área, mas se querem ir para debaixo de água, garante Bettencourt, os arqueólogos têm muitas vezes de pôr os seus próprios meios ao serviço. “Neste momento falta tudo na arqueologia marítima em Portugal.” Durante anos e anos, explica, o CNANS fez com que o Estado tivesse o monopólio quase total desta área – gestão patrimonial, investigação, formação prática –, ao contrário do que acontecia na arqueologia terrestre, onde operavam já muitos privados e universidades. Quando entrou em declínio, com o desinvestimento da tutela logo no começo dos anos 2000, adivinhava-se uma “situação grave”, como esta que se vive agora, defende.

A reinstalação das reservas arqueológicas do centro, com “condições de conservação muito exigentes”, não é nada fácil, alerta este técnico que faz boa parte do seu trabalho debaixo de água nos Açores, em particular na baía de Angra do Heroísmo. As madeiras que estiveram em ambiente húmido ou encharcado durante séculos, acrescenta, têm de ser preservadas com condições de temperatura e ventilação constantes. Muitas têm até de estar mergulhadas para que a sua forma não se altere.

“Portugal esteve na linha da frente na discussão da convenção da UNESCO para o património subaquático [de 2001] e hoje é claramente um dos países que se arriscam a entrar em incumprimento. Já estamos na linha vermelha.” Jacinta Bugalhão, que está a fazer um doutoramento sobre a arqueologia portuguesa no final do século XX-começo do XXI, vai ainda mais longe: “Tudo isto é de uma enorme irresponsabilidade em termos nacionais e internacionais. Acho que podemos dizer que [a arqueologia náutica e subaquática] está quase naufragada. Que precisa urgentemente, pelo menos, de uma operação de resgate e salvamento, ninguém tem dúvida nenhuma.”

Notícia actualizada às 15h25 para acrescentar "planeada e sistemática". O arqueólogo José Bettencourt refere-se a escavações subaquáticas com um projecto científico determinado com antecedência e não as que são motivadas por situações de emergência.

Sugerir correcção
Comentar