27 de Março de 2016: um espectro ronda o mundo...

O argumento de que o teatro não muda nada é tão certo como o de um teatro que não contribui para uma mudança emancipada ajuda a nada mudar.

Neste Dia Mundial do Teatro [que amanhã se comemora], inverto a situação habitual e, apesar de estar do lado das “tábuas”, não vou falar para as “cadeiras”. Nem tão pouco das “cadeiras” para o “palco”. Vou tão só falar de artista para artistas, e de cidadão para cidadãos.

A Humanidade aproxima-se a passos largos de um qualquer desenlace que, a acontecer, porá fim à espécie ou obrigará a reconstruir quase tudo do zero. Não se trata de uma visão catastrofista, mas da catástrofe à vista. A menos que consigamos inverter muito rapidamente o rumo. E quem melhor para não se eximir a esse alerta, comprometido com a Humanidade e descomprometido de filiações prévias de natureza política, do que um artista? E na arte, alguém melhor que o do teatro, dada a imanência humana do próprio teatro?

Do perigo crescente (e provocado) a um conflito de guerra e terror multipolar – e consequentemente quase impossível de chegar a posteriores conversações de paz porque não se trata de exércitos a combaterem-se, mas de organizações militares, de Estado, privadas, religiosas, ocultas, visíveis, contraditórias e em balanças quase instantâneas de alianças feitas e desfeitas. Tratar-se-á, uma vez iniciado, de uma hidra de mil cabeças em que ninguém conseguirá distinguir nada de nada. Não haverá lugar, nem tempo, para cada um escolher os “bons” e os “maus”. Provocará um desnorteamento colectivo tão grande, que o sangue fará de cada um de nós um tubarão. Ou nem isso: rapidamente, tombaremos uns sobre os outros, num planeta feito um campo de grandes cogumelos de fumo radioactivos.

O planeta não desaparecerá, nem chorará a nossa morte colectiva. Nós, Humanidade, é que deixaremos de existir ou conseguir manter-nos no topo da pirâmide. Porque não compreendemos que esse papel é para curadores e não donos predadores da Natureza. Que a inteligência existe para fazer passar o sentimento a um estádio superior: não para o substituir, sufocar ou pôr de lado. E, no fundo, sem ele não há sequer inteligência. Sem zona límbica, o neocortex sucumbe às pulsões do cérebro reptiliano: é como uma casa sem paredes, que não suporta o telhado e este vem abaixo mergulhando terra adentro numa amálgama de alicerces, tijolos, telhas.

De resto, o perigo que corre em paralelo numa acção de entreajuda é a agressão às condições ecológicas para nos mantermos como espécie. Com a guerra que se prepara este estado de efervescência das águas a entrarem já em ponto de ebulição até se evaporar tudo é um milionésimo de milionésimo de milionésimo de um nano-segundo na história do Cosmos. Ou muito menos.

E neste contexto de horror do que se aproxima, as células zigóticas do 'monstro' reproduzem-se à nossa frente: do horror maior dos terrorismos (de grupos, Estado ou psicopatas), da tragédia dos refugiados, da fome, da escravatura de velhos e crianças à nossa indiferença diária pelo sofrimento dos que padecem desses males; da doença, da miséria, da orfandade e abandono das crianças, da indiferença aos velhos aos amores descartáveis tudo forma um caldo de morte anunciada DE Humanidade, antes DA Humanidade morrer. Os carros que apitam em frenesim, os empurrões nas carruagens do metro, o ficar sentado no autocarro indiferente à grávida, o passar à frente à má fila na fila, o abandono de animais ou a crueldade sobre eles exercida… são átomos quotidianos que formam a molécula de uma (falsa) loucura que parece ter invadido de súbito a Humanidade, mas que se chama tão só indivíduo em vez de pessoa, interesse em vez de solidariedade.

Ver isto e isto mostrar ao espelho da consciência de cada um para que seja o próprio a ver-se e não “o sábio a dar lições de amor” (Kipling) é o pouco ou o muitíssimo que o teatro pode fazer. Se o fizer só ele de nada serve, mas se o não fizer nem sentido tem. O argumento de que o teatro não muda nada é tão certo como o de um teatro que não contribui para uma mudança emancipada (não imposta ou de diktat propagandístico) ajuda – e de que maneira! – a nada mudar.

“O teatro nada tem a perder a não ser a própria Humanidade. Artistas de todo o Mundo, humanizai o teatro!”.

Encenador

castroguedes9@gmail.com

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