“O humor é uma questão de sobrevivência”

Podemos rir de Deus? Do Holocausto? Da morte? Jesus chorou duas vezes e nunca riu? Mas no Antigo Testamento Sara ri ao saber que vai ser mãe aos 90 anos. Afinal, as religiões têm humor ou nem por isso?

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ENRIC VIVES-RUBIO

Podia ser uma anedota: estavam um muçulmano, uma judia, um católico e dois ateus sentados no palco de um teatro… Mas não era. Na segunda-feira, ao final da tarde, este cenário era a realidade no Teatro São Luiz, em Lisboa.

Os dois ateus, os humoristas Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira, eram os anfitriões da primeira conferência do ciclo Tragédia+Tempo, sobre o humor, do qual são comissários. E começaram com ambição, propondo-se discutir as ligações entre o humor e a religião com três convidados, o sheik Munir da Mesquita Central de Lisboa, Esther Mucznik em representação da comunidade judaica e o padre Tolentino Mendonça.

O tema prestava-se ao humor, sem dúvida, mas também a divagações mais sérias (que aconteceram) e a desentendimentos (que não aconteceram). Para começar, uma pergunta lançada pelos dois humoristas: “O seu Deus é carrancudo?”.

O sheik Munir começou por mostrar algum humor. “Ser muçulmano nos dias de hoje não é fácil”, disse. E avançou directo para uma piada: “Errar é humano, perdoar é divino, acertar é muçulmano." Perante uma máxima tão definitiva, Bruno Nogueira quase colocou um ponto final na noite que acabara de começar, agradecendo a todos terem vindo e despedindo-se, mas o sheik tinha mais coisas para dizer: “Se Deus colocou em nós o sentido de humor, ele também o tem. Infelizmente há pessoas que pensam que Deus não tem tempo para sorrir, mas isso são ideias humanas.”

De entre os três convidados, uma beneficiava claramente de vantagem – pelo menos na perspectiva de Ricardo e Bruno. Esther Mucznik estava em palco com a ajuda do célebre humor judaico, enquanto o sheik Munir e o padre Tolentino lutavam com maiores dificuldades em demonstrar que as respectivas religiões se dão bem com o riso.

“A história judaica começa com uma gargalhada”, disse Esther Mucznik, lembrando como tanto Sara, de 90 anos, como o seu marido Abraão, de cem, riram ao receber a notícia de que iam ser pais. Mas, apesar do riso, Deus cumpriu a sua promessa e o casal teve um filho, Isaac, cujo nome significa em hebraico “ele ri”.

Ricardo confessou o seu fascínio por essa “relação milenar” entre o judaísmo e o humor, para a qual encontra uma explicação possível: “o facto de no judaísmo não haver uma ideia clara de uma vida depois da morte”. Está convencido de que a consciência de que “isto acaba aqui” estimula o humor.

Esther Mucznik concorda que “a missão do judeu é sobretudo uma missão na Terra”, mas socorre-se de outras explicações. O humor, diz, pode ser “uma forma de distanciamento em relação ao sofrimento e à angústia”. O que conduz a conversa para a questão de saber como foi possível fazer humor no meio do Holocausto. “O humor é uma questão de sobrevivência. O judeu ri em primeiro lugar de si próprio. É um humor muito anti-autoritário, antipoder, muito corrosivo em relação a si mesmo.” Um exemplo? Uma piada como a que pergunta porque é que os judeus têm o nariz grande. Resposta: porque é de graça. E zás, lá se vão dois estereótipos de um golpe só.

Num lugar de horror como o Holocausto, “o humor é o último reduto de liberdade e uma forma de manter a sanidade mental”, diz Ricardo. “Era a única forma de se sentirem humanos”, completa Bruno. Mas se os humoristas, naturalmente, encaram o humor como o lugar de onde vem a força para resistir, os três crentes no palco explicam-lhes que a força vem também dessa crença que Ricardo e Bruno têm dificuldade em compreender, sobretudo perante a existência do mal. “O mal é inexplicável”, admite Tolentino. “Temos muito menos respostas do que pensamos.”

“Existindo Deus, isto do mundo não será uma piada perversa?”, interroga-se Bruno, contando a história da avó que, muito doente, sofreu durante vários anos, pedindo sempre a Deus que a deixasse morrer. “Terá pedido ao Deus errado?”, perguntou Ricardo. “Assim já se percebe, afinal a culpa é dela." E a audiência riu, provando uma vez mais que não há assunto suficientemente sério para não poder ser atravessado por uma boa piada.

Ou… haverá? Restava ainda a questão de o islão aceitar ou não o humor, sobretudo quando ligado à blasfémia. Sheik Munir explicou que muito depende do contexto e que o que será aceitável dizer-se num país pode não ser bem compreendido noutro. E deu como exemplo a sugestão bem-humorada de um imã que disse que o Ramadão devia ser como os Jogos Olímpicos: de quatro em quatro anos e sempre numa cidade diferente. Uma piada que pode ser dita em Lisboa, mas se calhar não noutras partes do mundo.

Perante a blasfémia, Munir aconselha os muçulmanos que se sentem indignados a “reagirem racionalmente, não emotivamente”. Por seu lado, Esther Mucznik defendeu a necessidade de “uma separação clara entre a religião e a política” e a importância de não interpretar os textos sagrados literalmente. Aliás, lembrou Ricardo, este é outro dos pontos em comum com o humor – tal como a religião, não deve ser entendido de forma literal.

E os cristãos, como ficam neste debate? Tolentino Mendonça não escapou a uma ou duas perguntas difíceis, como esta: porque é que Jesus chora duas vezes nos Evangelhos e não ri nunca? O padre tem uma certeza. “É impossível que Jesus nunca tenha rido.” O que é importante, defendeu, é a nossa capacidade de “olhar para a vida na sua plenitude – e o humor faz parte dela – e aí o riso é mais uma âncora para se poder viver, como a poesia”.

Como a poesia, efectivamente, concordou Ricardo. “Há uma leveza na poesia que vem da vontade de retirar peso às coisas. Exactamente como o humor.” O riso, concorda Tolentino, “ajuda-nos a criar essa espécie de leveza, é um remédio contra o fanatismo”. E Esther, para terminar: “Temos até a liberdade de rir de Deus. Não há nada que escape ao riso." 

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