João Paulo Feliciano transforma uma exposição de arte em propaganda publicitária

Boa parte da Pop partiu da imagem publicitária para fazer obra de arte. João Paulo Feliciano faz o contrário: no contexto artístico, no contexto mesmo de uma das melhores galerias portuguesas, que merecia sem dúvida melhor, pega na arte e transforma-a em publicidade.

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Assim que se entra na galeria, o espectáculo é, no mínimo, desconcertante. Grandes impressões fotográficas com pouca qualidade ocupam uma das paredes. Uma estrutura que se assemelha a um suporte de palco está no meio da sala principal, ao lado de letras recortadas amontoadas no chão, que parecem restos do cenário de um qualquer festival de verão que se acabou de desmontar. Mais além, o logotipo de uma conhecida marca de telecomunicações surge reproduzido e emoldurado, no meio de outras peças do mesmo teor. Só se pode tratar de uma coisa, pensa o visitante incrédulo: de uma crítica explícita ao entorpecimento das consciências operado por uma cultura de massas omnipresente, que tem em semelhantes eventos a apoteose mística por si própria fabricada.

João Paulo Feliciano, o artista que assina a exposição, estaria bem posicionado para o desenvolvimento de um conceito deste tipo. Toda a sua obra, iniciada há mais de vinte anos, se tem concretizado em torno das relações entre música e artes visuais. Sempre demonstrando uma qualidade quase sem falhas, tem sido particularmente inovadora no contexto português, e mereceu mesmo uma antológica de grande qualidade na Culturgest em 2006, intitulada The possibility of everything. Em tempos não muito distantes, um crítico de arte muito conhecido, cujo nome não revelaremos, dizia que, se alguma vez fosse convidado para comissariar a representação portuguesa na Bienal de Veneza, este artista seria a sua escolha sem hesitação.

É que Feliciano sabia ser brilhante. Infelizmente, não é nada disso que se nota nesta exposição. Há anos que o artista exerce as funções de director artístico do festival Nos Primavera Sound no Parque da Cidade, no Porto. Há pouco tempo teve uma epifania, ao perceber, como afirma, que a exposição, pensada nos últimos dias da mais recente edição do mesmo, revelava que agora era o próprio festival que surgia como fonte de inspiração das obras da exposição, acrescentando, na folha de sala, que tal só é possível por “tanto promotor como patrocinador confiarem a um artista o pensamento e desenho de tudo aquilo que condiciona a relação indestrinçável entre a música e o espaço onde ela acontece”.

É claro que é possível fazer toda uma série de associações entre o que se passa na galeria Cristina Guerra e a história do ready-made – porque no fundo, tudo o que aqui está mais não é do que a recriação de possíveis ready-mades. Pensemos na Fonte de Duchamp, o urinol que o mesmo enviou para um salão em retaliação por não ter sido aceite no mesmo evento no ano anterior. Contudo, a intenção era aí totalmente jocosa, e o humor, por uma vez, está completamente ausente deste trabalho de Feliciano. Pensemos ainda nas caixas de esfregões Brillo de Andy Warhol, essas sim também reproduções de objectos comuns, que pretendiam operar simultaneamente uma desclassificação do objecto artístico e uma afirmação autoral de que a arte não é mais do que aquilo que a sociedade entende como sendo arte. Ambos os casos possuem parentescos com esta “Primavera”. O que está ausente de todos eles é o completo descaramento com que o artista, a coberto da definição da obra de arte  - é arte porque está numa galeria, e o que se mostra nas galerias é sempre uma obra de arte – apresenta como criação original.

A invocação de Andy Warhol é por isso aqui a mais certeira. Não porque represente um paradigma daquilo que Feliciano aqui fez, porque não representa, mas sim porque materializa o exacto inverso do propósito do artista português. Boa parte da Pop partiu da imagem publicitária para fazer obra de arte. João Paulo Feliciano faz o contrário: no contexto artístico, no contexto mesmo de uma das melhores galerias portuguesas, que merecia sem dúvida muito melhor, pega na arte e transforma-a em publicidade. A quem lhe paga, noutro lugar, um ordenado qualquer.

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