Um negro é um branco é um negro no palco do S. João

Eles - 13 actores de origem africana - são Os Negros, de Jean Genet, na nova encenação de Rogério de Carvalho

Genet não queria que a peça fosse feita por actores brancos, mas em 1986 não havia actores negros em Portugal e Rogério de Carvalho fez a peça com os actores que havia. Vinte anos depois, Os Negros, de Jean Genet, são mesmo negros: portugueses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e são-tomenses "de um belo negro lustroso" e quase sempre com sotaque, na primeira encenação de Rogério de Carvalho para o Teatro Nacional S. João (TNSJ). Eles, os pretos, falam a partir de hoje. Normalmente é contra os brancos, mas às vezes também é contra eles. "É um texto terrível, ninguém sai daqui ileso. Mas para nós é diferente: nós sentimos na pele o que é dito aqui", diz Rogério de Carvalho.
Entre os 13 actores que compõem o elenco - Adorado Mara, Alberto Magassela, Ana Magaia, Ângelo Torres, Carlos Paca, Dom Petro Dikota, Jaime Lopes, Josefina Massango, Laurinda Chiungue, Lucília Raimundo, Nelson Boggio, Odete Môsso e Orlando Sérgio -, há negros que fazem de negros e negros que fazem de negros a fazer de brancos. E é de resto isso - o "teatro duplamente teatral de Genet", as encenações dentro da encenação - que mais interessa a Rogério de Carvalho: "O texto do Genet é riquíssimo, independentemente do contexto do anticolonialismo e das relações de poder entre a Europa e África. Mas o que me interessa aqui é sobretudo o jogo entre a realidade e a ficção. O vaivém é tão constante e há tantas zonas de ambiguidade que, de repente, o espectador acaba por perder a noção da realidade. O terreno que parecia estável torna-se movediço, e, para o espectador, é como estar à beira do abismo: normalmente, as coisas estão mais assentes, não há este artifício de fuga constante".
Em Os Negros, sublinha o encenador, o mais importante é o que acontece fora de campo - fora do alcance do espectador, portanto. A haver uma realidade, ela não está em cena: "Nesta peça, as coisas que acontecem fora do palco são a verdadeira realidade. O que acontece em palco serve apenas para distrair o público, para que não tome consciência do que realmente está a acontecer - uma revolução, o julgamento de um traidor negro, a sua condenação à morte...", nota. Não é uma peça sobre os negros, nem a favor deles - é uma peça "contra os brancos", escreveu Genet, e é apenas uma peça: "Na sua solidão, que poderá representar o actor condenado pelo nosso pulso férreo a ser apenas um actor? Na verdade, nunca virá a matar o seu amo, felizmente, cruzes canhoto! Pois se os seus actos são sempre fictícios e a sua faca sem gume. Contra quem vai poder virar-se desenfreadamente?".
Em palco, eles viram-se desenfreadamente contra uma branca, e só isso já é uma festa, mas também se viram desenfreadamente contra as "vidas preciosas" dos espectadores (dos brancos, portanto, como pretendia Genet, que escreveu a peça a pensar neste bibelot do século XVIII: uma caixa de música em que quatro negros de libré se inclinam perante uma princesinha de porcelana branca). Aqui, quatro ou mais negros de smoking e vestido de noite inclinam-se perante um cadaverzinho de porcelana branca que acabaram de matar, enquanto outros quatro ou mais negros de máscara branca se inclinam sobre eles. Nós não estamos cá em baixo, a vê-los: são eles que estão lá em cima, a ver-nos a nós.

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