Os museus de etnologia vão morrer?

O novo Museu do Quai Branly valoriza o aspecto estético das colecções etnográficas de uma forma até aqui nunca vista. É o fim do divórcio entre a abordagem antropológica e a perspectiva da história da arte?

Fora com a arte primitiva, negra, tribal, selvagem ou "primeira". O último termo, quase só usado em França e mais recente, foi mesmo recusado para nomear o novo Museu do Quai Branly aberto a 23 de Junho em Paris, um projecto em que se envolveu pessoalmente o Presidente francês Jacques Chirac. A opção pelo nome identificar só o lugar onde o museu se situa esconde uma polémica que dura há dez anos e que passou também por discussões à volta da morte da própria etnologia (ou antropologia, uma vez que são sinónimos). No seu discurso inaugural, Chirac disse que "esta nova instituição dedicada às outras culturas será para aqueles que a visitam uma incomparável experiência estética". É exactamente a ênfase na estética, no aspecto formal, na história da arte, que está no cento da discussão: é "um museu de arte ou de etnologia?", interrogou o L"Express.
O responsável pela museologia no Quai Branly, Germain Viatte, escreveu na revista Télérama que estas colecções são geralmente classificadas como "etnográficas", uma etiqueta "tenaz" que as circunscreve a uma determinada visão científica: "Uma visão que faz pouco caso da sua história e da desses povos que conceberam essas obras, e que, por uma estranha aberração, lhes recusa, a pretexto do termo "arte", a capacidade de invenção estética ou expressão artística."
O Museu Quai Branly "foi um abanão fortíssimo", reconhece o antropólogo Joaquim Pais de Brito, director do Museu Nacional de Etnologia, que esteve em Paris na inauguração a participar numa série de mesas-redondas. "A partir de um acto de poder, propôs-se repensar as instituições em que os objectos estavam guardados e as relações que mantinham com os próprios museus e investigadores."
À partida, foi um projecto presidencial sem que a comunidade dos antropólogos tivesse sido consultada, comenta Nélia Dias, uma antropóloga especialista em museologia. "Teve a oposição de nomes como os antropólogos Louis Dumont ou Jean Rouch, que escreveram manifestos contra o fim do Musée de l"Homme."
Mas em 1997 os antropólogos são chamados a participar, tornando-se Maurice Godelier director do projecto científico. "Um dos desafios do museu é ver se será capaz de ultrapassar a dicotomia entre a abordagem antropológica e a perspectiva estética", afirma Nélia Dias, contribuindo para que a antropologia e a história da arte deixem de trabalhar viradas de costas uma para outra.
O mais "dramático", diz Pais de Brito, foi o desmantelamento de parte do Musée de l"Homme, com a passagem de 250 mil objectos das colecções etnográficas para o Quai Branly. "Tinha, sem dúvida, problemas museográficos, mas tinha um século de história. Foi nele que se desenvolveu muito da antropologia francesa e mundial."
O Musée de l"Homme também se construiu sobre os escombros de outro museu. É o herdeiro do Musée d"Ethnographie, criado na Exposição Universal de 1878. Foi aí, em 1906, que Picasso teve a sua revelação, perante a arte africana, e pintou, de seguida, Les Demoiselles d"Avignon, uma das peças fundadoras da arte moderna.

A invenção do objecto-testemunho
Foi já a sonhar com o Musée l"Homme que foram feitas grandes recolhas científicas, entre as quais as de Claude Lévi-Strauss no Brasil ou de Marcel Griaule em África. É neste novo museu, aberto oficialmente em 1938, que os objectos recolhidos são promovidos a testemunhos de uma sociedade. "Essa noção do objecto-testemunho vai presidir às recolhas e implica que o objecto só se torna relevante se acompanhado de documentação", diz Nélia Dias.
Pais de Brito diz que é, por isso, "um logro" falar da morte da etnologia a propósito do Quai Branly, porque a disciplina já se tinha separado dos objectos: "O museu Quai Branly não tem nada a ver com a morte da etnologia. Há décadas que havia um divórcio entre a etnologia e os museus. Foi uma disciplina que começou por construir-se nos museus, mas que depois de entrar para as universidades deixou os objectos."
A partir dos anos 50, diz o director do Museu de Etnologia, "a bibliografia mostra que os objectos não estão no cerne da construção dos problemas, das interrogações, em antropologia". Nas principais correntes teóricas da antropologia na Europa, não há objectos que sejam relevantes para as questões teóricas que preocupam a antropologia nesta época, diz Nélia Dias, professora no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Uma antropologia que estuda coisas como os sistemas de parentesco, políticos ou simbólicos, como os mitos no caso de Lévi-Strauss.
O antropólogo João Leal, da Universidade Nova de Lisboa, diz que a antropologia está de muito boa saúde e nos anos 80 o que acabou foi uma certa maneira de fazer antropologia: "Não houve uma crise, mas chegou ao fim uma forma clássica de fazer antropologia, que privilegiava o estudo de sociedades e culturas não ocidentais, muitas vezes vistas como estáticas."
Num mundo global, um dos novos desafios é, por exemplo, as identidades múltiplas, afirma Nélia Dias: "Nos museus de etnologia continua a pensar-se em termos de etnia. Por isso, questões como a autoria são irrelevantes. Os anos 80, com a antroplogia pós-moderna, ao questionar-se a autoridade do antropólogo, critica-se a tradição de recolha que põe de lado a dimensão individual e o processo criativo."
Pais de Brito concorda que a antropologia nunca soube interrogar verdadeiramente estes objectos: "Foram ficando ocultos e pouco problematizados nos museus ao mesmo tempo que eram valorizados no mercado da arte."
Um dos principais actores da construção do museu Quai Branly foi o marchand Jacques Kerchache - é dele o termo "artes primeiras" -, que em 1990 publicou no Libération o seu manifesto Para que as obras de arte do mundo inteiro nasçam livres e iguais... É ele que também convence Chirac a abrir no Louvre, contra a opinião do director, uma embaixada do futuro museu Quai Branly.

"Artes primitivas" no LouvreEm 2000, as "artes primitivas" entram no Louvre. Num artigo publicado no último número da revista Science Humaines, Nélia Dias defende que no Louvre "artes primitivas" e "artes primeiras" são entendidas como sinónimos, mostrando que o termo recusado para o Quai Branly é devedor do primeiro.
Mas os debates semânticos revelam também "a crise que a área da museologia etnográfica está a passar", depois de ter imposto, durante muito tempo, a dicotomia entre arte e artefacto, diz Nélia Dias. "Esses museus estão quase todos a ser repensados na Europa. O que chegou ao fim foi a ideia do museu ligado a um saber disciplinar. Pode ser um ganho. Porque não uma abordagem em termos do estudo da cultura
visual desses objectos? A antropologia tem que estabelecer diálogos com outros campos do saber que lidam com os objectos, como a história da arte, os estudos de cultura material ou os estudos visuais."

O regresso dos etnólogos ao museu
Ao valorizar o objecto do ponto de vista estético, Pais de Brito admite que o Quai Branly possa vir a dinamizar a antropologia: "Com esta hiper atribuição de sentidos aos objectos, o museu pode fazer regressar os etnólogos ao local da sua origem. O museu gera um campo de possibilidade: construir novos problemas em torno dos objectos, das relações com os terrenos, das próprias relações com os investigadores desses países." Uma das questões importantes é fazer a ponte com as culturas actuais que produziram essas obras-primas, com a produção contemporânea desses países. "É preciso lá voltar hoje."
Uma das coisas a que os museus de etnologia têm sido um pouco reticentes é a recolha de objectos híbridos, em nome de critérios como o da autenticidade dos objectos. "Partem da ideia que cada cultura tem uma especificidade que lhe é própria e que essa especificidade é imutável", acrescenta Nélia Dias.
Pais de Brito admite que um dia o Museu Nacional de Etnologia possa ter outro nome. Acha que o nome actual é "impreciso", por referenciar a disciplina e o público que a conhece, quando o público do Museu Nacional de Etnologia já não é apenas esse. Nomes alternativos não avança, mas diz que o museu tem que ser uma marca na cidade: "O museu é um laboratório em que o olhar emerge. O que eu desejo é um museu que não tem total controlo sobre si próprio."
Com projecto de Jean Nouvel, o arquitecto francês mais mediático e internacional, o Museu do Quai Branly teve um orçamento à escala da sua ambição - 232 milhões de euros. Tem 300 mil peças, estando apenas expostas cerca de 3500. Apesar do conjunto mais importante ter vindo do Musée de l"Homme, as colecções do ex-Musée des Arts d"Afrique et d"Océanie também contribuíram para os fundos. Foram adquiridos mais 8000 objectos, entre as quais uma estatueta feminina chupícuaro, de uma cultura pré-hispânica do México central, que se tornou no símbolo da instituição. E se o lado estético conta muito na apresentação das peças, o visitante tem um conjunto de informações, entre os quais mapas, que lhe permitem compreender o contexto em que foram criadas.
A colecção permanente está organizada em quatro grandes áreas geográficas: África, Oceania, América e Ásia. O presidente Jacques Chirac disse, no discurso de inauguração, que o museu quer ser um lugar que manifesta um outro olhar sobre o "génio" dos povos e das civilizações da África, Ásia, Oceania e América: "No centro da nossa iniciativa está a recusa do etnocentrismo, dessa pretensão pouco razoável do Ocidente de transportar sozinho o destino da Humanidade. Está a rejeição desse falso evolucionismo que supõe que certos povos estariam congelados num estádio anterior da evolução humana, que as suas culturas ditas "primitivas" só valeriam como objectos de estudo para o etnólogo, ou na melhor das hipóteses de fonte de inspiração para o artista ocidental." Isso, acrescenta Chirac, "são preconceitos absurdos e chocantes: "Já não existe uma hierarquia entre as artes, como não existe uma hierarquia entre os povos."

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