O disco encalhado de Ildo Lobo

Ildo Lobo foi durante cerca de duas décadas a voz dos Tubarões, o grupo que liderou a modernização da música cabo-verdiana. Até que o colectivo se desfez e Ildo se lançou a solo com o mais tradicional "Nós Morna". O álbum, lançado há quatro anos e meio na editora Lusáfrica (a mesma de Cesária Évora), foi bem recebido no seu país e mesmo no mercado europeu, tanto que hoje ainda continua a vender. Estranha-se nessa medida o jejum editorial desde então observado pelo ex-Tubarões.Não foi por sofrer de crise de inspiração, assegura o cantor: "segundo o contrato com a editora devia lançar um segundo álbum dois anos depois do primeiro. Mas foi havendo vários adiamentos e inclusive houve alguns que não me caíram bem no estômago. Posso e devo pensar que esse atraso é da conveniência da editora, porque eu não tenho interesse nenhum nisso. Acredito que um disco meu não incomoda um disco do Bana, como não incomoda um da Cesária, nem de ninguém. Estou convicto de que conquistei o meu espaço na cultura cabo-verdiana". Fossem quais fossem as razões, a verdade é que o segundo a solo de Ildo Lobo com o título "Intelectual" só agora vem a público. Não constitui uma profunda mudança de rumo, porém, também não é uma repetição da fórmula acústica do precedente. A presente dezena de temas alinha mornas de par com coladeras e baladas, integrando arranjos com sabores soul e jazzy. Ildo assume a inflexão: "'Nós Morna' é uma homenagem ao meu pai, que só cantou mornas toda a sua vida e nunca teve hipóteses de sair de Cabo Verde. Já em 'Intelectual', além do meu trabalho pessoal, há também um espírito comercial. Daí a presença de coladeras, que são menos monótonas e mais fáceis de ouvir sem dar atenção às letras do que as mornas. Por outro lado, as próprias coladeras neste disco não são agressivas - não são tanto de dança, mas mais para ouvir -, o que as poderá tornar apelativas mesmo a quem prefira mornas. A estratégia de gravar coladeras para garantir maior acessibilidade é no mínimo surpreendente, uma vez que tem sido sobretudo pelas mornas que tem passado a internacionalização da música cabo-verdiana. A noção de um álbum comercial e apontado à exportação terá de ser relativizada no caso de Ildo, sobretudo quando se verifica que as letras do seu novo disco vêm apenas impressas em crioulo. É uma questão de princípio: "Nunca faço traduções das letras, porque o que eu aprendi através dos anos é que não se traduzem. O que eu faço, no lugar disso, é uma explicação do sentido dos versos. A explicação pode traduzir-se, ao passo que o texto original pode perder de todo o sentido na tradução". Em "Intelectual" o acento é colocado nos inéditos, metade dos quais trazem a assinatura de Betu. Ilustre desconhecido do mundo artístico, este autor é economista de profissão. Entre ele e o ex-Tubarões existe, porém, uma longa cumplicidade: "O Betu foi colega de carteira do meu irmão e eu conheci-o através dele, porque me roubavam a viola para irem tocar às escondidas. Comecei a gravar coisas dele desde os Tubarões e hoje em dia temos uma relação muito estreita, de tal forma que sempre que ele tem um momento de inspiração a primeira coisa que faz é chamar-me. Tenho-me 'encostado' muito a ele, até porque ele foge ao sistema tradicional rígido da morna e introduz dissonantes muito suaves". Entretanto, ainda "Intelectual" estava na fase de adiamentos sucessivos, já Ildo Lobo tinha outro álbum pronto: "A meu ver é mais um documento para juntar à discografia cabo-verdiana. É uma espécie de 'Nós Morna', do ponto de vista em que corresponde ao mesmo investimento numa área da música cabo-verdiana que tende para o esquecimento". Na verdade, este álbum ainda inédito resulta de uma proposta da Câmara Municipal de Évora para um espectáculo de mornas que fizeram história na música de Cabo Verde, gravadas por Ildo na companhia dos alunos da escola de música daquela cidade alentejano. Aconteceu em Janeiro passado e integrou 34 estudantes de música entre os 14 e os 17 anos de idade dirigidos por um maestro russo.Este álbum com orquestra ainda não tem data de lançamento, mas, como diz o próprio artista, "já deu confusão, porque a minha própria editora julgou que eu ia lançar esse disco à revelia dela. Seria um estupidez da minha parte, além de que incorreria em problemas jurídicos". O que parece seguro é que a antiga voz dos Tubarões não voltará a editar na mesma casa: "Não é minha intenção continuar a trabalhar com a Lusáfrica. De resto, acabo com "Intelectual' o meu contrato, que era para dois discos. Não tenho mais nenhuma proposta, só sei que não vou ficar parado". Fartos dos dissabores resultantes de trabalhar por conta de outrem, o cantor cabo-verdiano de 48 anos de idade planeia agora criar a Cantal, uma editora finalmente 100 por cento cabo-verdiana.

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