O barco de guerra português e outros poemas de Raquel Chalfi

Uma das mais importantes vozes da poesia israelita, em Lisboa

a Mais que não seja pelo título, talvez Raquel Chalfi leia o poema O barco de guerra português na sessão que lhe é dedicada hoje, às 18h30, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Também dramaturga e documentarista, mas sobretudo conhecida e premiada pelos seus livros, Chalfi é considerada uma das vozes centrais da poesia contemporânea israelita. Estreou-se em 1975, com Poesias Subaquáticas e Outras, e é logo aí que aparece este poema com ritmo de canção:"[...]
Ai ai ai
porque não sou, porque não sou
um barco de guerra português?
O Alberto faria flutuar a minha bóia em todas as tempestades, e eu flutuaria flutuaria, movendo-me entre água e ar,
a sonhar com bolhas coloridas. O Vítor
caçaria uma presa para mim, uma presa fremente
em braços ardentes, ai! Que maravilha de braços!
O Aldo, ai pobre Aldo, teria
que se contentar com a tarefa da digestão, o pobre Aldo, todo ele
células de produção produção, ai triste do Aldo!
O Jorge, oh, o Jorge, estaria no centro da reprodução. Ai ai.
[...]"
No fim, há uma nota: "O barco de guerra português é uma comunidade de centenas de seres marinhos que vivem colectivamente. O "barco" divide-se em quatro grupos "profissionais", dos quais um constitui a bóia em forma de vela; o segundo cria os braços ardentes; o terceiro digere a comida; o quarto constitui o centro de reprodução".
Quem nunca tenha ouvido falar deste "barco de guerra português" poderá suspeitar que se trata de um ser imaginário.
Foi o que aconteceu, aliás, à tradutora Lúcia Liba Mucznik, a quem a própria Raquel Chalfi pediu a tradução, por intermédio de um divulgador da poesia portuguesa em Israel, Uri Attar.
Convidada, através da Embaixada de Israel, a vir a Lisboa apresentar a sua obra na Faculdade de Letras (ontem) e na Casa Fernando Pessoa (hoje), Chalfi trabalhou com Lúcia Mucznik a tradução dos poemas numa série de encontros no Café Nona, em Telavive, em Dezembro passado. "Foram encontros quase mágicos", diz Mucznik. "Eu ia lá ter pelas seis e ficávamos duas, três horas a trabalhar. Ainda por cima era Inverno, anoitecia mais cedo."
Depois de Lúcia regressar a Lisboa, continuaram por e-mail e por Skype.
Este intercâmbio resultou em 24 poemas que Francisco José Viegas prevê publicar no próximo número da revista Tabacaria, em 2008 (que terá ainda uma antologia de poesia marroquina, e poemas de Helder Macedo, José Agostinho Baptista e Vasco Graça Moura).
A poesia israelita está quase toda por publicar em Portugal. De Chalfi, Pedro Mexia traduzira alguns poemas a partir do inglês, para uma edição anterior da Tabacaria.
Perigo mortal
Sentada no sofá de um hotel de Lisboa, a recuperar de horas de voo e falta de sono, Raquel começa por explicar, na sua voz profunda, um pouco rouca - trabalhou muitos anos em rádio -, que o seu nome se escreve mesmo com "q" e não com o habitual "ch" da transcrição a partir do hebraico. "É por causa da minha infância no México. Vivi lá dos 12 aos 15 anos, os meus pais foram lá professores." Ao voltar a Israel, o "ch" soou-lhe estranho. "O "q" está mais próximo do som em hebraico."
Filha de judeus askenazitas, ambos vindos da Polónia antes da II Guerra, Raquel nasceu em Telavive, num ano que prefere não revelar. À adolescência no México seguiu-se uma temporada a estudar letras em Telavive e, depois, dois anos nos Estados Unidos, onde estudou teatro em Berkeley e cinema em Hollywood.
O barco de guerra português nasceu de "três linhas lidas numa revista de divulgação científica". Porque, como qualquer biólogo comprovará, a criatura existe. Em inglês chamam-lhe "portuguese man-of-war" (barco de guerra português). O nome latim é Physalia physalis. Em português, é conhecida como "caravela portuguesa". Parece da família das medusas (ou alforrecas), mas apresenta várias diferenças. Em vez de uma "cabeça" em forma de campânula ou tampa, tem uma espécie de bóia em forma de vela insuflada, azul ou azul-púrpura. Esta parte anda à tona, levada pela corrente e pelo vento, como uma vela de caravela desfraldada. Daí o nome. As outras estruturas deste organismo comunitário são os tentáculos (que podem atingir 50 metros, altamente dolorosos e mesmo mortais para quem os toque); o aparelho digestivo que recebe as presas capturadas pelos tentáculos; e o aparelho reprodutivo.
Esta musa de Raquel Chalfi - que, no seu primeiro livro, convivia com outros seres marinhos, reais ou imaginários, como a medusa Aurelia ou o peixe-barracuda -, habita de preferência águas mornas e ventosas. Nos Açores, é comum.
O fascínio da criatura, múltipla, representa "a aspiração de qualquer mulher à poliandria", segundo Chalfi, que, de resto, tanto vai beber à ciência como ao quotidiano de Telavive ou Jerusalém.
E falta muito, mas mesmo muito, para que os leitores vejam o fundo e o fim. "Tenho centenas, não quero dizer milhares... de poemas por publicar."

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