O artista sob hipnose para perceber o seu cérebro

Há quatro anos que Matt Mullican não fazia uma performance depois de ser hipnotizado, como fez ontem perante uma sala cheia na Culturgest

Matt Mullican, artista plástico, entra numa sala da Culturgest em Lisboa, casaco preto, calças de ganga, encosta-se a uma parede e começa a deslizar por ela abaixo. Arrasta-se, cara junto ao chão, gemendo, até chegar a outra parede, e lançar um grito: "Tragam-me um jornal. Preciso de um jornal". Começou aquilo que Mullican apresenta como uma performance sob hipnose.Há cerca de quatro anos que o artista norte-americano não apresentava uma performance deste tipo em público. Por isso, a sala da Culturgest esgotou completamente para o espectáculo de ontem à tarde. Ninguém sabia exactamente o que ia ver. O próprio Mullican diz que tudo pode acontecer quando está sob hipnose. E é precisamente isso que ele quer: mergulhar no mais profundo do seu cérebro e compreender os pensamentos e os sentimentos antes de estes atingirem a linguagem, seja ela a palavra ou qualquer outro sistema de códigos.
O artista faz-se acompanhar de um analista, o brasileiro Vicente de Moura, a trabalhar em Viena, que o hipnotiza, e com o qual trabalha há já alguns anos. Mas Vicente não aparece em público. A entrada em estado de hipnose já aconteceu, supostamente, há algum tempo quando os espectadores entram na sala.
Duas horas antes, sentado no bar da Culturgest, Matt Mullican mostrava-se ansioso. "Penso que esta vai ser uma performance muito interessante". Porquê? "Tem a ver com a minha vida pessoal, como vivo neste momento, como me sinto fisicamente. Tenho viajado muito, tenho feito muitas conferências sobre este assunto, e estou exausto", explica.
Além disso, faz este tipo de experiência de testar os seus próprios limites há muito tempo, desde a década de 1970, e esta é a primeira performance que faz quando já começa a sentir as consequências das acções anteriores sobre o seu corpo. "Mas quero ir tão longe quanto possível, quero forçar os limites, é isso que os artistas fazem".
O que se passa, então, durante aquela hora e meia? Mullican bebe café, atira café contra a parede, lê o jornal, faz sons repetitivos, por vezes grita umas frases, arrasta um escadote e, com um pincel e tinta preta, pinta as paredes, cobertas de papel branco. Traços negros, formas redondas, números, vão surgindo enquanto o artista faz gestos repetidos, agita as folhas do jornal, esfrega-as contra a cara. Na sala há uma cama, mas ele não a usa.
Já lhe aconteceu dizerem-lhe que parecia um autista, e perguntarem-lhe se tinha estudado o comportamento dos doentes mentais para o imitar tão bem. A leitura que ele faz é outra: os estados de autismo, de esquizofrenia, de psicose, "estão dentro de nós, e normalmente suprimimo-los". Ele, nas performances, deixa-os manifestarem-se.
Descreve o momento de entrada em transe como "ser colocado num elevador pictórico", do qual sai para "um local profundo". E sublinha que o essencial na hipnose é a concentração. O que pretende é apenas passar para outro estado de consciência porque acredita que há muitos níveis de consciência e que na maior parte dos casos não nos apercebemos disso. "Quando alguém vai a guiar um carro, tem o filho no banco de trás, vai a falar ao telefone, dirige-se para o mercado, está atento ao trânsito, faz várias coisas ao mesmo tempo. Muito do que faz é automático. Limita-se a fazê-lo. Esse automatismo é muito semelhante ao estado de transe".
Mullican não quer usar a hipnose, como acontece por vezes na psicanálise, para recuar ao seu passado ou descobrir o que lhe aconteceu quando era pequeno. "O que faço tem a ver com coisas mais abstractas, com a percepção, o entender o cérebro, os sentimentos. Estou a tentar definir como penso antes das imagens e das palavras. Penso em pensamentos, não preciso de falar comigo próprio, porque penso muito mais depressa do que isso". Sentimentos é para ele uma palavra-chave: "Estão no centro dos pensamentos".
E como é que se chega lá? A performance acaba com Mullican a esfregar-se no chão e a dizer, como se falasse para si próprio: "És uma farsa, falhado, falhado, és um falhado. Isto é estúpido. Estás a esfregar-te no chão em frente a uma data de pessoas. És uma farsa. Falhado".

Sugerir correcção