Morreu o poeta angolano António Cardoso

Foi uma referência da literatura da angolanidade,
mas sobretudo uma referência da
militância anticolonial. Tinha 73 anos

Ficou mais conhecido pela vida do que pela obra, e isso diz muito acerca das duas coisas: 30 anos depois da independência de Angola, há mais gente a recordar que foi o preso angolano mais longamente retido no Tarrafal (dez anos, que se seguiram a outros três numa cadeia de Luanda) do que a lembrar-se de ter lido os seus Poemas de Circunstância. António Cardoso tinha 73 anos quando morreu anteontem, em Lisboa, vítima de cancro na próstata, segunda a agência Lusa. Personagem-chave da luta anticolonial e do movimento literário Vamos Descobrir Angola, António Cardoso nasceu em Luanda a 8 de Abril de 1933 e publicou os seus primeiros poemas no boletim Estudante, o jornal do Liceu Salvador Correia. Mas foi no contexto das duas vagas de fundo da literatura da angolanidade - a geração da Mensagem, de Agostinho Neto e António Jacinto, e a geração da Cultura, de Luandino Vieira - que se afirmou como autor de referência da poesia africana de língua portuguesa.
Quando chegou ao Tarrafal, recordou ao PÚBLICO Manuel Alegre, "era já um poeta consagrado": "Conheci o António Cardoso na prisão: quando eu cheguei, ele já lá estava, juntamente com o Luandino Vieira e o António Jacinto. Naquele período terrível dos interrogatórios, recebi uma caixa de fósforos com uma mensagem deles, a dizer que haveria sempre alguém acordado. E, de facto, quando estava a ser interrogado, ouvia sempre alguém a assobiar uma velha canção. Para mim, esse sinal de que estavam vigilantes tinha uma importância incrível. O António Cardoso também tinha sido selvaticamente torturado, dizia-se que as camisas dele iam para lavar manchadas de sangue", sublinha.
O compromisso com o movimento independentista angolano marcou a poesia - e, mais tarde, a produção novelística - de António Cardoso, tal como marcou a poesia de todo o movimento Vamos Descobrir Angola. "O António Cardoso foi um dos pioneiros da afirmação de uma literatura angolana de língua portuguesa - e, consequentemente, da afirmação da angolanidade. Era um programa estético, mas também político", acrescenta o escritor português. "Foi uma voz extremamente importante nessa altura, pelas posições que assumiu e porque transformou a sua poesia num local de afirmação da angolanidade, no contexto de uma geração que foi à procura de si mesma, à procura de Angola", disse também ao PÚBLICO a poeta angolana Ana Paula Tavares.
Após a independência, António Cardoso exerceu funções na Rádio Nacional de Angola, foi um dos membros fundadores do Conselho Nacional da Cultura e chegou a assumir a presidência da União dos Escritores Angolanos. Apesar de ter sido suficientemente editada, a sua obra "permanece praticamente desconhecida", afirma Ana Paula Tavares: "O António Cardoso é muito mais conhecido pela sua vida um tanto marginal - não marginal ao poder, porque foi um militante do MPLA e assim se manteve até ao fim da vida, mas marginal no sentido de não ter um lugar para viver, de viver sabe-se lá onde - do que pelo que escreveu. É o representante de uma certa boémia muito característica de várias gerações de Luanda".
Entre as obras de António Cardoso, destacam-se volumes como Economia Política (Poética) e Panfleto (Poético), editadas pela Plátano, os livros de contos Baixa, Musseques (Edições 70) e Casa de Mãezinha: Cinco Estórias Incompletas de Mulheres (Ulmeiro), e sobretudo 21 Poemas da Cadeia (União dos Escritores Angolanos) e Poemas de Circunstância 1949-1960, que a Nzila (associada angolana da Editorial Caminho) reeditou em 2002. Foi a sua última obra.

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