Como são os nobres portugueses

Começou ontem, com uma sessão dedicada à Idade Média, um curso sobre a nobreza na história social portuguesa. Orientado pelo historiador Nuno Monteiro, que recentemente publicou uma obra fundamental sobre o declínio deste grupo, o curso chega ao período contemporâneo. No Palácio Fronteira, em Lisboa, a nobreza portuguesa é tema em seis sessões até 18 de Março.

Se invertermos a organização cronológica do curso dedicado à nobreza, que ontem começou no Palácio dos Marqueses da Fronteira em Lisboa, chegamos à contemporaneidade. E a pergunta o que é um nobre em 1999 - se existe - não tem uma resposta fácil. A primeira questão que se coloca é: o que fará um nobre numa sociedade democrática? "Actualmente parece-me completamente impossível dizer o que é. É alguém que acha que tem uma distinção particular que lhe foi legada por ascendentes familiares. O que existe é um conjunto de pessoas que utilizam signos nobiliárquicos como títulos ou brasões de armas", explica o historiador Nuno Monteiro, orientador do curso e investigador do Instituto de Ciências Sociais. Mas esses atributos aparecem entre outros e não são suficientemente fortes para distinguir alguém que, ao mesmo tempo, pertence a outros grupos: "Essas pessoas são também economistas ou donos de lojas, têm múltiplas pertenças. Os atributos nobiliárquicos não conseguem construir uma identidade suficientemente separada que permita afirmar, com um mínimo de verosimilhança, que existe nobreza em Portugal. Tenho as maiores dúvidas que haja um grupo reconhecido por todos." Coisas como o Conselho da Nobreza, que confirma a passagem dos títulos de geração em geração, "não têm uma existência legal, se alguém usar um título que não tem direito não lhe acontece nada". De facto, o que distingue a nobreza durante grande parte da história, à excepção do período contemporâneo, é o seu estatuto privilegiado estar consagrado no direito. "Isso é a diferença matricial entre a ordem jurídica liberal e pós-liberal e a ordem jurídica antecedente. A ordem jurídica anterior à Revolução Liberal reconhece o princípio do privilégio e, por consequência, dos privilégios nobiliárquicos."Para Nuno Monteiro, o golpe fatal de um grupo que constituiu durante séculos a elite dirigente em Portugal foi dado, ao contrário do que habitualmente se pensa, com a Revolução Liberal, ainda no século XIX, e não com a implantação da República, em 1910: "Do ponto de vista institucional, a maior revolução da história portuguesa é a Revolução Liberal - triunfante a partir de 1874 - não é a revolução republicana nem sequer o 25 de Abril. No que se refere à alta nobreza, o liberalismo tem uma importância decisiva porque a maior parte desses nobres foi miguelista. Vão ser politicamente banidos, inclusivamente da Câmara dos Pares, e saem profundamente afectados materialmente". Na monarquia constitucional de D. Pedro, que derrotou a facção absolutista de D. Miguel, é muito residual a presença dos chamados "grandes do reino" do Antigo Regime - um estatuto inerente aos títulos de conde, marquês ou duque. "Com a guerra civil, os liberais conquistam Lisboa e isso é muito importante. A monarquia a seguir aparece praticamente sem nobreza, com uma corte pouco faustosa. Há quem, exageradamente, fale mesmo de uma monarquia quase republicana, na sua fase final, em que o rei constitucional está rodeado de instituições que são quase republicanas", continua o historiador. O último governo presidido por alguém nascido na aristocracia de corte data de 1870 e o último presidido por um titular de 1878.Essa enorme ruptura dá-se, explica o historiador, porque a alta nobreza estava extremamente dependente da coroa, não tinha poderes autónomos do centro político. "No Antigo Regime português, a coroa tem uma importância na estruturação dos grupos nobiliárquicos muito maior do que nos outros sítios". Esta alta nobreza, que se constitui no seu essencial no século XVII, com a Restauração em 1640, mantém-se com "uma incrível estabilidade" até ao século XIX. Mas mais de metade dos seus rendimentos são de doação régia e carecem da confirmação do rei. Um dos instrumentos fundamentais que cria esta dependência da coroa é a Lei Mental, pensada no tempo de D. João I (1357-1433) e aprovada com D. Duarte, onde se estipula que os bens doados pela coroa podem sempre a ela regressar: "O rei doa aos senhores o direito a receberem rendas, mas sempre com uma forma de regressão à coroa, que é determinada na famosa Lei Mental. Por isso, essa doação tem sempre uma natureza relativamente precária. O que o rei doa, pode, em determinadas condições, voltar sempre para a coroa." Ora a legislação liberal de Mouzinho da Silveira, decretada ainda durante a Guerra Civil (1832), vem abolir os dízimos eclesiáticos e os direitos de foral, ou seja, as benesses que o rei doava à nobreza - "se a coroa que doa essas coisas desaparece, o sistema desmorona-se todo". E há ainda outro factor que deixa as grandes casas desprotegidas: fortemente endividadas já não têm a protecção da coroa contra a execução dos credores. Se o topo da nobreza, embora com alguns indícios de declínio, se cristaliza nos séculos XVII e XVIII, é também a partir sensivelmente dos século XVI que surge uma noção de nobreza diferente da de fidalguia: "Praticamente todas as pessoas que não trabalham com as mãos são juridicamente nobres a partir de uma altura que é difícil de precisar. Admite-se que todos os licenciados, que todos os juízes de câmara, que todos os oficiais do Exército têm alguma nobreza. Há uma noção muitíssimo difusa de nobreza, não é possível dizer onde ela acaba". Este estatuto é juridicamente reconhecido: apesar de estes indivíduos não terem armas e da utilização do termo não tornar mais fácil adquiri-las. Mas, por exemplo, para ser elegível para uma câmara é necessário ter nobreza, o que traz factores de tensão com as famílias antigas. "É um factor de abertura, ela alarga-se e desqualifica-se. Isso faz com que Portugal seja um país de nobreza numerosa. Nesta acepção, os nobres eram mais de cinco por cento da população". O mesmo fenómeno de alargamento da nobreza vai verificar-se com a revolução liberal. E como diz em 1879 a princesa Maria Rattazi, citada por Nuno Monteiro num artigo publicado em 1998 no livro "La Europa del Sur en la Época Liberal. España, Itália y Portugal", a nobreza antiga é substituída por outra: "A nobreza portuguesa existiu, mas hoje já não existe [?] Em compensação há uma nobreza novíssima, que se multiplica como cogumelos, invasora e exuberante." E a frase do escritor Almeida Garrett, continua o historiador, torna-se emblemática desta multiplicação de títulos: "Foge ladrão que te fazem barão! Para onde, se me fazem visconde?" Um gosto pelos títulos comum a toda Europa oitocentista. Quem são os beneficiários destes novos títulos que mais que duplicam entre 1834 e 1855 e voltam a duplicar nos 30 anos seguintes? Depois de 1855, são os fidalgos de província que, muito menos dependentes das benesses da coroa, não tiveram até aqui qualquer possibilidade de se tornarem grandes do reino, ou seja, acederem às distinções superiores da monarquia. A partir daí, para além dos políticos, aumentam os negociantes e os novos ricos com títulos. Mas se associarmos estes dados ao declínio dos titulares entre a classe política do fim do século, "parece evidente que é a própria importância atribuída aos títulos nobiliárquico que parece estar a declinar", escreve Nuno Monteiro no mesmo artigo. "Muitos indivíduos e famílias continuaram a cultivar os pergaminhos da sua fidalguia antiga sem se preocuparem em obter títulos do constitucionalismo monárquico" e, no final do século, nota-se uma diminuição do número de títulos atribuídos. A queda da monarquia em 1910 impede "uma leitura desta ligeira diminuição", embora esta tendência possa ser finalmente a inscrição dos números da especificidade do caso português com "a sua precoce erosão das distinções nobiliáquicas".O curso que ontem começou, com inscrições no valor de 15 contos, é composto por seis sessões: uma introdução geral (Nuno Monteiro), a primeira Idade Média (Luís Krus), o final da Idade Média (Mafalda Soares da Cunha), o século XVI e a expansão (também Mafalda Soares da Cunha), o Antigo Regime (Nuno Monteiro), a Revolução Liberal e o Período Contemporâneo (também Nuno Monteiro).

Sugerir correcção