As duas cartas de Sophia que Jorge de Sena nunca recebeu

Correspondência apresentada ontem pela editora Guerra e Paz, entre camilianos, queirosianos e a História de Agustina

Na mala que a poeta e ensaísta Maria Andresen Sousa Tavares ontem levou para a Fundação Gulbenkian iam duas cartas que Sophia de Mello Breyner escreveu a Jorge de Sena mas que ele nunca leu. Uma, porque veio devolvida (Sena mudara de casa). Outra, porque Sophia "se esqueceu de a enviar" (calcula a filha). Maria Andresen estava na Gulbenkian para apresentar Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena. Correspondência (1959-1978), que a nova editora Guerra e Paz acaba de pôr nas livrarias, com cerca de 30 cartas inéditas de Sophia e 15 de Sena.
As folhas manuscritas trazidas na mala só foram descobertas (no ainda imprevisível espólio de Sophia, à guarda de Maria Andresen) "nos últimos 15 dias", quando o volume já estava a ser impresso. No lançamento desta primeira edição tornaram-se o melhor argumento para o editor Manuel S. Fonseca anunciar uma segunda edição.
"Creio que o grande mal português é que sempre deixamos os gregos em paz", diz Sophia na carta não-enviada, longa de quatro páginas, a 18 de Novembro de 1969. Há dez anos que os dois amigos se escreviam.
A oposição à ditadura levara Sena ao exílio (primeiro no Brasil, depois nos EUA) em 1959. Viera a Portugal em 1968 (entre peripécias com a PIDE), e foi nessa visita que Sena e Sophia se começaram a tratar por tu.
De todas as cartas entre ambos que se conhecem, esta não-enviada é a primeira em que ela usa o "tu". E a única do período entre 1967 e 1971.
Sena tinha-lhe mandado o livro de poemas Peregrinatio ad loca infecta, que resultara da conturbada viagem a Portugal. Um dos poemas diz "deixa os gregos em paz". E é isto que Sophia contesta, veemente. Por não termos deixado "os gregos em paz" é que "somos um país que não se reconhece", "um país que julga que a austera, apagada e vil tristeza é a condição do homem", um país que foi de grandes navegadores mas nunca teve "em frente do mundo aquele sorriso de espanto que tinham as estátuas dos navegadores jónicos".
Tal como não leu estas palavras, Sena não chegou a saber "dos comentários não muito elogiosos" que Sophia faz na outra carta (a que tem carimbo de devolução) quanto a um poeta que Sena revelou aos leitores portugueses, Cafavy (Kavafis, na posterior tradução).
E, perante as muitas dezenas de pessoas que quase enchiam o auditório, Maria Andresen revelou ainda uma carta de Maio de 1994 em que Mécia de Sena (a quem se deve a preservação do espólio agora publicado) propõe a Sophia a divulgação das cartas.

Camilo, Eça e as "óperas"De mais três lançamentos se compôs a sessão de estreia da Guerra e Paz: um Camilo e um Eça com capas thriller e uma História de Portugal contada por Agustina Bessa-Luís em 12 "óperas" e ilustrada por "bonecos" pop (do designer Luís Miguel Castro).
Por Camilo Castelo Branco (dois contos e um "romancezinho" sob o título Impressão Indelével) respondeu João Bénard da Costa, a quem a editora encomendou o prefácio. "A obra de Camilo sempre me seduziu mais que a de Eça, embora conheça melhor a de Eça", disse. E, tendo no outro extremo da mesa Maria Filomena Mónica, mais disse: "Camilo é um bem maior escritor que Eça, embora Eça seja um bem maior romancista que Camilo..."
Mónica estava ali para responder pelo conto Singularidades de Uma Rapariga Loura, de Eça, que aceitou prefaciar apesar de também ser loura e como "despedida" aos seus 10 anos de biógrafa de Eça, "o que para uma relação amorosa" já é obra. Trata-se de "um conto relativamente pequeno", vantagem "para os mais jovens que têm dificuldade em ler outra coisa que não uma fotócopia". E é o conto em que Eça "quebra" com a literatura da época, sobre o qual o "pomposo" e "ridículo" Alexandre Herculano disse ser "prosa afrancesada, que não prestava para nada".
De resto, queirosiana sim, Eça foi "tão grande como Flaubert, Zola, Tolstoi ou Dickens", com o azar de ter escrito em português, mas, para Mónica, em Portugal, "o grande génio do século XIX é Cesário Verde".
A camiliana Agustina teria aqui fechado em glória, não fosse a "gripe intensa", que a reteve no Porto, contou a amiga Inês Pedrosa, que ontem de manhã aceitou substituí-la. Não tendo tido tempo de ler as 12 "óperas" em que Agustina Bessa-Luís dividiu Fama e Segredo na História de Portugal, Inês homenageou a mulher da "palavra escrita", mas também da "palavra falada" e da "palavra ouvida", que "decanta a natureza humana" numa obra que "nasceu com 100 anos e morrerá menina", num "crescendo de graça" e sem nenhuma culpa. "Cada voz", escreveu Agustina, "está só e é única e é contra o coração dos outros que ela ressoa".

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