Almada e Ernesto de Sousa: "A alegria é a coisa mais séria do mundo"

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Almada, no seu atelier, com Ernesto de Sousa, filmados por Manuel Costa e Silva em Abril de 1969

O Museu de Serralves revisita hoje uma sessão e um filme de Ernesto de Sousa em volta da figura de Almada que, em 1969, agitaram a vida cultural e artística do país. E recorda de novo a Alternativa Zero

Estávamos no final de 1969. António Sérgio, filósofo, tinha morrido em Janeiro; a poetisa Luiza Neto Jorge publicara Dezanove Recantos; Aveiro acolhera o II Congresso Republicano, com a presença de Mário Soares (que nesse ano publicaria os seus Escritos Políticos); os estudantes de Coimbra faziam greve e afrontavam o Estado Novo; houvera um simulacro de legislativas na dita "Primavera Marcelista" que seriam integralmente vencidas pela União Nacional; António da Cunha Telles rodava O Cerco, com Maria Cabral, dando seguimento ao Cinema Novo; Almada Negreiros (1893-1970) conhecia um regresso inesperado à cena pública com a participação no programa televisivo Zip-Zip, ele que, nesse ano, inaugurava a sua última grande criação, o painel Começar, na Gulbenkian... E, no início de Dezembro, numa anónima sala de teatro amador em Algés, José Ernesto de Sousa (1921-1988) promovia a acção Nós não estamos algures, parte do seu projecto mais ambicioso de fazer um documentário sobre o seu artista-modelo, Almada, Um Nome de Guerra.

Portugal estava a mudar. E Ernesto de Sousa, historiador e crítico de arte, jornalista, professor, cineasta (tinha estreado em 1962 Dom Roberto, com Raul Solnado, filme precursor do Cinema Novo), poeta, fotógrafo, performer, não era estranho a essa mudança.

No Clube de Teatro 1.º Acto, em Algés, "num dos primeiros dias de Dezembro", diz Isabel Alves, a viúva de Ernesto de Sousa, que não recorda a data certa (ver entrevista na página seguinte), aconteceu um "exercício de comunicação poética" que teve precisamente Almada no centro das atenções, e no qual o pintor-poeta modernista participou activamente. Um grupo de actores amadores leu textos seus, de Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge. Houve música ao vivo composta e executada por Jorge Peixinho e outros músicos, entre os quais Clotilde Rosa; Fernando Calhau desenhou os cartazes e Carlos Gentil-Homem projectou filmes e diapositivos; foram exibidos excertos das entrevistas a Almada filmadas por Ernesto de Sousa... E esta noite "muito especial", recorda Isabel Alves, não foi alheia à mudança que então começava a verificar-se no país.

É esse acontecimento, e as memórias a ele associadas, que a Casa de Serralves evoca hoje à noite, na inauguração de uma exposição que reencena a acção de Ernesto de Sousa e, complementarmente, a exposição colectiva Alternativa Zero, que ele promoveria alguns anos mais tarde, em 1977 (ver caixa).

Quando organiza a sessão em Algés, em 1969, "Ernesto de Sousa tinha já deixado marca" nos meios culturais e artísticos nacionais, nota João Fernandes, director artístico do Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS) e co-comissário, com Ricardo Nicolau, das exposições a inaugurar hoje.

Fernandes recorda a sua "filiação no exercício da crítica de arte dos neo-realistas", mas também a sua acção como cineclubista e cineasta, nomeadamente com a realização de Dom Roberto, produzido sem subsídios estatais e em regime de auto-financiamento, como aliás aconteceria com as múltiplas acções de Ernesto de Sousa, nomeadamente o projecto do filme sobre Almada.

Ricardo Nicolau lembra também "o papel pioneiro" que, no início dos anos 1960, Ernesto de Sousa tivera no estudo e na valorização da arte popular, nomeadamente com os bonecos dos artesãos minhotos Rosa Ramalho e Franklin.

Já a atenção a Almada - diz Isabel Alves, enquanto guia o PÚBLICO numa visita à montagem da exposição na Casa de Serralves - vem mesmo da adolescência de Ernesto de Sousa, que já nos anos 1930 se "entretinha a recortar ilustrações dos painéis do pintor". Ricardo Nicolau considera que Ernesto de Sousa "encontrou em Almada, e na sua dispersão genial, uma forma de justificar o que para ele seria o artista de vanguarda, a que mais tarde chamaria mesmo "operador estético"".

É assim que, diz ainda Nicolau, desde meados dos anos 1960, Ernesto de Sousa começa a trabalhar no projecto de um documentário, um filme-inquérito, sobre o Almada. "Muitos artistas juntaram-se à volta dele para o ajudar a financiar o filme, doando quadros com que se fizeram vários leilões." Mas o projecto do artista-cineasta vai evoluindo, e o filme vai-se atrasando. É então que surge, no final de 1969, o tal "exercício de comunicação poética" Nós não estamos algures - título "roubado" do livro de Almada A Invenção do Dia Claro (1921) -, mais uma etapa na realização do filme Almada, Um Nome de Guerra, cuja versão definitiva só viria a ser estreada em 1983, em Madrid.

A exposição-evocação na Casa de Serralves distribui-se por várias salas do rés-do-chão, onde se encontrarão vitrinas com fotografias, película de filmes, cartazes, livros, jornais, recortes e tantos outros objectos de arte que estiveram ou documentam o que se passou naquela noite de Dezembro de 1969, em Algés. Simultaneamente serão projectados slides, filmes e sequências de entrevistas que depois entraram (ou não) na versão final. E um grupo de vinte actores amadores, dirigidos por João Sousa Cardoso, lerá poemas e textos de Almada e outros poetas. No final, como em 1969, haverá uma ceia. Porque - era um dos lemas de Ernesto de Sousa - "a alegria é a coisa mais séria do mundo".

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