A herança nazi de Thomas Harlan

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Linha Vermelha dr

Filho do mais importante realizador de propaganda nazi, dedicou-se a expor os horrores do III Reich. Em Linha Vermelha, de José Filipe Costa, é personagem principal

No IndieLisboa, José Filipe Costa apresenta Linha Vermelha, o seu documentário sobre Thomas Harlan e Torre Bela, o filme que este alemão fez sobre a revolução portuguesa.

À distância de trinta anos, Torre Bela é uma recordação, por vezes irónica, por vezes nostálgica, de uma era aparentemente longínqua. O uso extensivo de planos longos, a ausência de comentário em voz off que oriente a interpretação das imagens e a atenção dedicada às pessoas e à maneira como falam fazem deste filme um documento único. No entanto, quando Harlan morreu, no ano passado, aos 81 anos, a notícia passou quase despercebida. E a história pessoal de Harlan não é menos fascinante do que o filme.

Nascido em Berlim a 19 de Fevereiro de 1929, Thomas era o filho mais velho do mais importante realizador de propaganda nazi. "A sua vida foi marcada pelo simples facto de ser filho de Veit Harlan, um acaso involuntário que Thomas assumiu como um destino escolhido", escreveu o crítico norte-americano David Hudson, no site de cinema MUBI. Thomas tornara-se no mais feroz crítico do seu pai, ao mesmo tempo que reclamava responsabilidade pela sua herança: "É uma história infame, e não posso imaginar que nem mesmo os filhos dos filhos dos meus filhos possam algum dia ser completamente dissociados dela."

A célebre diatribe antijudaica de Veit Harlan O Judeu Süss foi pessoalmente encomendada por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do Terceiro Reich. O filme adapta (e distorce) um romance publicado em 1925 por Lion Feuchtwager. Na versão de Harlan, conta a história de um financeiro judeu do século XVIII que, através de esquemas sinistros, consegue manipular o poder político numa cidade alemã e acaba por violar uma rapariga ariana, casada, que em choque e por vergonha se afoga. Num final feliz à moda nazi, o judeu é apanhado e enforcado às mãos da multidão. Segundo alguns relatos, depois de assistirem a O Judeu Süss, os espectadores por vezes seguiam o mote e iam pelas ruas em perseguição de judeus.

Os protagonistas do filme eram as grandes estrelas do cinema alemão da época e o filme foi um enorme sucesso de público: só na Alemanha atraiu vinte milhões de espectadores, outros vinte Europa fora.

"Se se quiser compreender os filmes que as pessoas pagavam para ver, Veit Harlan é o nome que conta", disse ao New York Times a historiadora Linda Schulte-Sasse. "Harlan era o Steven Spielberg ou o James Cameron do seu tempo, e temos de imaginar O Judeu Süss como um filme em que entrassem Meryl Streep, Jack Nicholson e Brad Pitt."

O chefe das SS, Heinrich Himmler, fez dele visionamento obrigatório para os polícias e membros das SS. A sua projecção está até hoje interdita na Alemanha e outros países europeus, mas, depois da II Guerra Mundial, Veit Harlan continuou a fazer filmes.

Mas seria Harlan convictamente anti-semita, ou meramente um carreirista? E - pergunta-se Caspar, o mais novo dos seus filhos - "por que é que teve de o fazer tão bem?".

Um dos muitos paradoxos da história da família Harlan é que Dora Gerson, a primeira mulher com quem Veit esteve casado, uma actriz e cantora judia, que viria a morrer em Auschwitz. Veit casou depois com a actriz austríaca Hilde Korber, e o casal teve três filhos: Thomas Christian, Maria Christiane (nascida em 1930) e Susanne Christa (1932-1989). As irmãs de Thomas seguiram carreira de actrizes. Abdicaram do apelido, algo de que Thomas foi asperamente crítico. Ambas casaram com judeus, embora Marie se tenha divorciado e hoje diga que a culpa pelos actos do pai provavelmente influenciou a sua escolha de marido. Susanne converteu-se ao judaísmo; e os avós paternos da filha, Jessica, foram assassinados pela máquina política que o avô materno servia.

O favorito do pai

As ligações dos Harlan ao cinema não terminam por aqui. A viúva de Stanley Kubrick, Christiane Susanne, é sobrinha de Veit Harlan. Kubrick, que era judeu, conheceu um dia o tio da mulher. "Tomou um grande copo de vodka", recorda Christiane Kubrick em Harlan - Na sombra do Judeu Süss. E disse: ""Sinto-me como o Woody Allen, com cara de dez judeus". E durante muito tempo pensou fazer um filme sobre isso."

Thomas lembrava-se de ter conhecido Hitler e Goebbels em casa dos pais, em Berlim, ao jantar, quando tinha sete anos. Até ao fim, nunca deixou de evocar essas recordações de infância, e o entusiasmo que lhe tinham ensinado a sentir pela Alemanha nazi. Ele era, nas suas próprias palavras, "o favorito" do seu pai, e em 1955 os dois escreveram em conjunto Traição à Alemanha, um filme de espionagem passado no Japão durante a II Guerra Mundial.

O que levou Thomas a virar-se definitivamente contra o pai foram os dois julgamentos a que Veit Harlan foi sujeito na Alemanha dos anos 50. Das duas vezes, Veit foi absolvido: O Judeu Süss não podia ter contribuído para o Holocausto, concluiu-se, uma vez que era anterior à "solução final".

Segundo Edgar Feuchtwager, filho do autor do romance O Judeu Süss, "é provavelmente correcto atribuir o filme a uma fase em que a política nazi estava orientada para a expulsão, e não para o extermínio". No entanto, segundo acrescenta num artigo intitulado Dois Filmes sobre O Judeu Süss, "não há dúvida de que o filme desempenhou um papel na criação do ambiente em que o extermínio se tornou uma opção possível".

Thomas perdeu a fé no sistema de justiça. "Descobri que o próprio juiz, durante a guerra, na Ucrânia, tinha mandado enforcar mulheres e crianças pelo roubo de um cachecol", conta Thomas a Christoph Huebner no documentário Thomas Harlan, Wandersplitter, de 2006. "Vocês são todos escumalha, foi o que eu pensei."

Pesquisa na Polónia

Durante as décadas de 1950 e 1960, Thomas viajou pela Europa, morou em Paris e Roma e tornou-se amigo do filósofo francês Gilles Deleuze e do actor alemão Klaus Kinski; envolveu-se em grupos esquerdistas e aderiu ao grupo italiano Lotta Continua. A colaboração do seu pai com o nazismo tornou-se numa obsessão para o resto da vida. Em 1959, enquanto encenava na Polónia uma peça sobre a revolta do gueto de Varsóvia, começou a investigar os crimes que ali tinham sido cometidos. A pesquisa consumiu-lhe quatro anos, e levou à abertura de processos judiciais contra dezenas de pessoas na República Federal da Alemanha.

A obra artística de Harlan reflecte as mesmas preocupações. Para o seu primeiro filme após Torre Bela, Wundkanal (ou Ferida de Bala, de 1984), convenceu um antigo comando das SS, Alfred Filbert, a protagonizar uma ficção singular: Filbert encarnava um criminoso de guerra nazi raptado por um grupo de extrema-esquerda e obrigado a confessar os seus crimes. Supostamente uma obra de ficção, Wundkanal converte-se numa confissão autêntica. À época, o crítico americano Harlan Kennedy escreveu na revista Film Comment: "O veterano das SS de cara de cadáver está sempre a puxar pela nossa relutante paciência. Enquanto a câmara o sonda, as lágrimas começam ao relembrar-se do irmão, que morreu num campo de concentração depois de falar contra o Führer. Por vezes, Alfred parece um idoso injustamente acossado... Depois, damo-nos conta do horror da nossa compaixão por um idoso que ajudou a matar onze mil judeus... E então perguntamo-nos se, mesmo com um homem como este, não deveríamos sentir compaixão... E lentamente o filme começa a remexer no sentido ético do espectador."

O realizador nova-iorquino Robert Kramer, que conheceu Harlan em Paris (e que, como ele, fez um filme sobre a revolução portuguesa), registou a experiência de Wundkanal em O Nosso Nazi; os dois filmes foram exibidos em conjunto no Festival de Cinema de Berlim de 1985. Segundo Harlan Kennedy, "o filme de Kramer sobre as rodagens é ainda mais emocionante. O vídeo de duas horas lança uma crua luz tanto sobre Harlan como sobre Herr F, à medida que se torna cada vez mais claro que o entusiasmo do realizador não é apenas pelo desenterrar da verdade mas pelo exorcismo do seu amor culpado pelo pai, que teve uma morte impune e bem almofadada em Capri."

Ao longo da sua última década de vida, passada num sanatório no Sul da Alemanha, Thomas continuou a ocupar-se dos mesmos assuntos. Em 2000, publicou Rosa, um romance que trata dos crimes nazis cometidos na Polónia; Cemitério de Heróis, de 2006, descreve o zelo e o orgulho com que os funcionários de um campo de concentração cumpriam as suas tarefas diárias. Também em 2006, foi editada em filme uma longa entrevista biográfica com Harlan, com o título Wandersplitter. "Wandersplitter é o nome que se dá a uma peça de metal, geralmente um estilhaço de granada, que entra no corpo e que em qualquer altura pode deslocar-se para o coração, provocando a morte. Nunca se está tranquilo quando se tem um fragmentos desses alojado no corpo", explica Harlan. Postumamente, em Março deste ano, saiu mais um livro. O título tem uma palavra só: Veit.

Um nome como herança

O documentário que Felix Moeller realizou em 2009 (Harlan - Na sombra do Judeu Süss) traça as diferentes maneiras como os filhos e os netos de Veit Harlan têm lidado com a herança do seu nome, e os conflitos entre eles provocados por isso. Caspar, filho de Veit com a heroína de O Judeu Süss, Kirstina Söderbaum, assegura que o pai "não era nem anti-semita nem nazi". "De maneira nenhuma: falava de forma tão pejorativa sobre os nazis que é impossível que fosse um deles." Marie acrescenta que o pai "tinha imensos amigos judeus, que o adoravam". Na opinião de Marie e de Caspar, o que levou Veit Harlan a fazer O Judeu Süss não foi convicção ideológica, mas dedicação absoluta à vocação de cineasta. Queria fazer filmes e Caspar acredita, além disso, que "terá sido obrigado".

As críticas dirigidas por Thomas ao pai são tão controversas que ele emerge como segundo protagonista no drama familiar. Como assinala Ian Buruma no blogue da New York Review of Books, "quem ouve os irmãos pensa que é Thomas e não Veit Harlan o grande vilão, pela maneira como expôs à luz as emoções mais básicas da família". "Como é que um filho pode falar assim do próprio pai?!", questiona-se Kristian, o outro filho de Veit e Kristina. "Aquilo que penso do meu pai só me diz respeito a mim e a mais ninguém. Uma coisa é o que se diz em família... E, ainda por cima, lucrando às custas disso! Francamente, é uma autêntica vergonha!"

Na mesma linha, Marie diz não conseguir compreender como é que, durante mais de trinta anos, alguém pode continuar a atacar assim o seu "pobre pai". "É de mais. As coisas que ele disse! O nosso pai chorou amargamente por causa disso."

Mas, para Thomas, a questão era precisamente não deixar que sentimentos de afecto o impedissem de ver de forma honesta, e completa, as responsabilidades do pai. "Sempre achei que não podia deixar-me amolecer. Sempre tentei evitar comportar-me de forma humanizada quando se tratava de assinalar uma coisa desumana."

A autojustificação era, para Thomas, o último e o mais grave dos pecados. Achava especialmente repugnante que Veit tivesse continuado a fazer filmes: "Quando se sabe que se fez um martelo que serviu para assassinar pessoas não se pode continuar a fazer martelos." Por duas vezes Thomas lançou fogo a cinemas onde os filmes do pai eram exibidos. "Não disse a ninguém que o tinha feito. Não era uma manifestação."

Christiane Kubrick acha que a vida do seu primo foi "destruída pelos seus próprios esforços para reparar algumas das coisas que o pai tinha destruído, e para apanhar as pessoas que ele achava que deviam ser punidas." A filha de Thomas, Alice, vai no mesmo sentido: "Penso que se trata de um trauma que ele não consegue ultrapassar. É uma autêntica ferida que jamais sarará."

No entanto, Thomas parecia encontrar conforto no facto de Veit Harlan o ter chamado para um último encontro. "Morreu nos meus braços, e estou-lhe incrivelmente agradecido por isso. Se eu tivesse um filho que me fizesse 10 por cento daquilo que fiz, nem lhe apertava a mão. É uma traição inacreditável, aquela que eu fiz. Senti que estava a fazer o que tinha de ser feito, e que, ao mesmo tempo, era uma coisa insuportável. Mas ele conseguiu compreender isso, e foi ele próprio quem preferiu morrer nos meus braços e não nos de outra pessoa."

Harlan parece ter desejado permanecer para sempre "o favorito" do pai, mesmo que esse pai fosse um nazi. E, com a sua intransigência, talvez tenha feito mais para humanizar a imagem de Veit Harlan do que os outros filhos na sua lealdade canina.

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