A harmónica nos lábios sempre jovens de Toots Thielemans

83 anos, belga, amigo de Elis Regina e Charlie Parker. Esta noite toca no Centro Cultural de Belém

Os pais de Jean Toots Thielemans, modestos comerciantes de Bruxelas, não queriam que o filho fosse músico. O jovem ainda entrou para a universidade para ser professor de Matemática, mas desistiu rapidamente - a culpa foi de uma harmónica, o instrumento que levou para o jazz e que o tornou num nome respeitado, tocando com, por exemplo, Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Ella Fitzgerald. Hoje volta a Lisboa, para tocar no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Ao telefone de Estocolmo, Suécia, Toots , de 83 anos, fala, numa voz arfante, mas plena de bom humor, de uma vida tão recheada que lhe parece difícil ter sido vivida por si. A primeira harmónica, comprada após ver num filme um prisioneiro a tocar antes de ser conduzido à cadeira eléctrica, começou como um passatempo. "E continua a ser um passatempo, a minha paixão", diz o músico. O tempo que deveria ser para estudar era usado para aprender harmónica, com a ajuda de discos dos poucos "pioneiros", nomeadamente Larry Adler, na área da clássica.
Durante a ocupação alemã, com discos antigos de Louis Armstrong que ainda conseguia arranjar numa loja do seu bairro, descobriu o jazz, ou melhor "o jazz é que nos descobre". Mais tarde, em Paris, e de cama com pneumonia, ganha de um amigo rico uma aposta - que conseguia reproduzir uma melodia de Fats Waller em dez minutos numa guitarra. Ganhou, e a partir daí dedicou-se à guitarra, ajudado pela audições lentas e repetidas no gramofone de discos oriundos do grande Django Reinhardt.
No final da guerra, o bebop explodiu na América. Para Thielemans, "foi uma revolução no jazz, comparável à revolução do Picasso na pintura". Tornou-se bebopper, "moderno", esqueceu a harmónica e foi tocar pela Europa com Benny Goodman, o rei do swing, até ir para os EUA em 1951.
Passou a maior parte da década de 50 como guitarrista no George Shearing Quintet, em cujas digressões conheceu a nata dos jazzmen (e jazzwomen) da época, com muitos dos quais veio a tocar e a gravar. "Eram todos muito bons para mim." Mas a maior recordação foi tocar com o saxofonista Charlie Parker. "Não fui eu que lhe liguei a pedir para tocar com ele, foi ele que me chamou. O manager disse-lhe se ele queria aquele miúdo belga da harmónica, e acabei a tocar nos Charlie Parker All Stars, com Miles Davies, Milt Jackson..."
Seguiu-se uma fase brasileira. "A evolução da música brasileira é muito paralela à do jazz. Bossa nova era bebop. Harmonias que na América Charlie Parker tocava, mas sem o génio melódico de um Tom Jobim." Acabou por tocar com muitos nomes grandes da música brasileira - Elis Regina, Caetano, Gilberto Gil, Milton Nascimento.
Para o concerto de hoje, com Hein van de Geyn no contrabaixo, Dré Pallemaerts na bateria e Karel Boehlee, passará por standards de jazz e o big american song book, George Gershwin, Duke Ellington, mas também temas mais modernos: "I do it for your love, de Paul Simon, Affinity,que toquei com Bill Evans em 1979, [Herbie] Hancock... Não toco músicas de 83 anos, toco músicas de 38 anos, tento sempre estar a evoluir e a ouvir toda a gente..."
O músico belga sofreu em 1981 uma trombose que lhe afectou o lado esquerdo do corpo e quase o impede de tocar guitarra, e a asma não lhe permite o assobio - outro dos sons distintivos -, mas a harmónica continua forte. "No meu corpo, os meus lábios continuam jovens."

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