A artesã surrealista de Barcelos

O Museu de Olaria de Barcelos expõe a sua colecção de peças de Rosa Ramalho, que nasceu há 120 anos. O comissário da exposição é o arquitecto e coleccionador Alexandre Alves Costa, que guiou o P2 numa visita a esta expressão única da arte popular

a Descobriu-a na segunda metade da década de 1950, quando, com os seus colegas da escola de Belas-Artes do Porto, e seguindo a intuição do pintor e professor António Quadros (1933-1994), se deslocou a S. Martinho de Galegos, uma freguesia de Barcelos, em busca da verdade da arte popular. Foi assim que Alexandre Alves Costa, arquitecto mas também coleccionador e, principalmente, um amador do figurado de Barcelos, conheceu Rosa Ramalho (1888-1977), então uma anónima barrista como tantas outras que faziam a fama de uma terra que exibia as cores e as formas do seu imaginário nas bancas da feira semanal, todas as quintas-feiras.No ano passado, Alves Costa regressou a Barcelos porque decidiu doar ao Museu de Olaria local uma importante colecção de peças de Rosa Ramalho (ou Ramalha, como também era conhecida, apesar de o seu nome de baptismo ser Rosa Barbosa Lopes), que lhe tinha sido confiada por um amigo. E acabou por aceitar fazer o inventário da vasta colecção daquela instituição e comissariar uma exposição, aberta até Junho de 2010, sobre a obra da mais conhecida barrista desta terra minhota.
"A Sra. Rosa era uma personagem muito interessante. Era uma mulher do campo, igual a todas as outras, com uns olhos que não enganavam ninguém, e que eram absolutamente excepcionais de finura, de inteligência, de esperteza", diz Alves Costa, recordando que foi António Quadros quem retirou a arte e o nome daquela artesã do anonimato, depois de a ter visto, um dia, a fazer um boneco em barro com uma agilidade desconcertante, na feira das Fontainhas, no Porto. "Ele achou-o muito bonito - era um passarinho. Perguntou-lhe se ela fazia mais. Ela respondeu que tinha feito há muitos anos, mas que tinha deixado de fazer. Mas estava sempre a trabalhar o barro, porque lhe fazia bem à pele." O pintor desafiou-a, então, a fazer uma fornada, que ele compraria. Foi o início de uma relação que duraria anos, e foi também o começo da segunda fase da vida de Rosa Ramalho como barrista, depois de se ter dedicado ao trabalho de moleiro até à morte do marido.
Da tradição ao surrealismo
Alexandre Alves Costa diz que os bonecos de Rosa Ramalho são, primeiro do que tudo, a expressão da tradição do figurado de Barcelos, "que é a mais rica do nosso país, do ponto de vista da criatividade, da variedade e da abrangência dos temas que recria", como o demonstravam já os estudos do etnólogo António Rocha Peixoto (1866-1909), há um século atrás. Mas, "sendo uma mulher muito ligada às raízes, a Sra. Rosa é muito mais do que simples seguidora da tradição. Para além de uma invulgar capacidade de manusear o barro, ela tem uma grande imaginação, aumenta a dimensão das peças e inventa e mistura coisas - as mulheres com corpo de animais, os porcos com cornos ou com cabeça de lobo -, e passa claramente para o campo da artisticidade pura". O arquitecto vê mesmo Rosa Ramalho como "uma artista surrealista", no modo como deixa voar a sua imaginação fértil e desbragada.
A propósito desta associação da arte da barrista minhota com a linguagem surrealista, há um episódio que faz já parte do romance da sua biografia: o facto de, a determinada altura da sua produção, Rosa Ramalho ter feito uma cabra idêntica à criada por Picasso levou alguns a defender que o pintor malaguenho poderia ter-se inspirado nela. Alves Costa diz que essa "é uma história falsa". O que aconteceu, assegura o arquitecto, é que alguém encomendou à artesã uma cabra pedindo-lhe que seguisse uma fotografia da de Picasso. De resto, a cabra faz parte do bestiário tradicional do figurado de Barcelos - como o porco, o boi ou o burro, afinal os animais da economia quotidiana da região, que são a matriz da arte popular aí como em qualquer outra parte do mundo, explica Alves Costa.
A assinatura
"Barcelos tem uma produção de figurado muito em série", que inicialmente se materializava nos assobios e nos paliteiros, nas suas formas mais diversas, que se vendiam na feira local - e que ainda hoje é uma das principais fontes da economia da terra. Mas de entre essa produção anónima emergiram sempre barristas cujas peças ultrapassavam os cânones tradicionais e se afirmavam como verdadeiros artistas. O arquitecto-coleccionador cita vários nomes: Teresa Carumas, Rosa Cota, Manuel Coto, Teresa Mouca ou o Sr. João "dos lagartos"... Mas foi Rosa Ramalho quem acabou por se tornar a figura e o nome mais conhecido - até pelo facto de ter começado a assinar as suas peças, por sugestão de António Quadros. "Foi uma tolice, que perverteu a originalidade, o anonimato, que era a marca do figurado da terra", lamenta Alves Costa, que chama a atenção para a importância e a riqueza de muitas outras barristas que ficaram na sombra da celebridade de Rosa Ramalho. Mas que, afinal, acabaram também por aproveitar dessa notoriedade, já que, hoje em dia, o artesanato também não dispensa assinatura, seja ela a do verdadeiro artífice ou a da Oficina, como a partir de certa altura aconteceu com a própria Rosa Ramalho, que ou só assinava as peças que eram produzidas pelos seus familiares, ou então punha mesmo esses seus "discípulos" (como a sua neta Júlia Ramalho, um nome que depois ganhou também direito a assinatura) a gravar o duplo "R" que actualmente garante a mais-valia do artesanato de Barcelos.
Uma visita à exposição do Museu de Olaria guiada por Alexandre Alves Costa ajudará a distinguir "o trigo do joio" da verdadeira arte de Rosa Ramalho. E da arte verdadeira da olaria de Barcelos.
Alexandre Alves Costa está já a preparar uma nova exposição sobre a arte de Rosa Ramalho, organizada a partir das relações com outras expressões artísticas suas contemporâneas, para ser apresentada, no próximo ano, no Senhor de Matosinhos. A exposição será realizada em parceria com António Gomes de Pinho, presidente da Fundação de Serralves e também um coleccionador de arte popular, e com Isabel Fernandes, actual directora do Museu de Alberto Sampaio, em Guimarães, e estudiosa do figurado barcelense (foi também directora do Museu de Olaria, e é a co-autora, com Alves Costa, do catálogo que acompanha a actual exposição em Barcelos).

Cavaleiro

"O cavaleiro é uma permanência na arte popular de todo o mundo. É uma figura que tem sempre uma certa solenidade, e existe muito em Barcelos. A Sra. Rosa fazia cavaleiros para os presépios (os reis magos), e fazia rainhas, princesas, soldados... Mas também existem cavaleiros do povo: este tem o particular interesse de ter associado o lagarto, que, como a cobra, está ligado à ideia de virilidade e de fertilidade - é uma simbologia que vem da Pré-História."

Mulher-sereia

"É também uma peça muito característica, que mistura cabeça humana com corpo de animal. Esta, que deve ser dos anos 60, é particularmente bonita. Há sempre muitas variações, que transformam esta figura numa coisa cada vez mais surrealista. Esta vai a tocar um instrumento, mas nas costas! Outras figuras aparecem viradas ao contrário, relativamente ao corpo do animal. É uma peça que a Sra. Rosa fazia muito."

Porco

"Há sempre um animal real na base, mas, depois, há um processo de transformação. Aqui há claramente uma mistura do porco com um lobo, com dentes - a ideia de ferocidade. Às vezes, surge com os cornos do boi ou com a cabeça do carneiro. É uma sobreposição muito característica no figurado de Barcelos e a Sra. Rosa explora bem isto."

Cabeçudo

"É uma representação dos cabeçudos das festas das aldeias, do hábito de as pessoas vestirem máscaras, para assustarem e para brincarem. A máscara existe, também, em todas as culturas do mundo. O cabeçudo é a representação dessa transfiguração. No Minho, continua a ter hoje uma utilização muito frequente. Basta ir à Senhora da Agonia, em Viana."

Cabra aculturada

"Chamei-lhe 'aculturada', porque é uma mistura da tradição das cabras de Barcelos, que são já referidas pelo Rocha Peixoto no século XIX, e que todas as mulheres fazem, que acabam com um feitio afunilado, quase com corpo de ave. Esta foi claramente feita com base numa fotografia da cabra de Picasso, que alguém forneceu à Sra. Rosa, pedindo-lhe para a copiar. Depois, ela continuou a fazê-la, mas passou também a misturá-la com a cabra da tradição local, regressando às raízes."

Galo

"Este galo tem um vidrado bicolor e um bojo muito grande, que normalmente é feito com torno, sendo-lhe depois aplicados os restantes motivos. Não tem nada três patas, como às vezes dizem, são só duas e um suporte. É uma peça muito pouco estilizada, que vem da tradição anterior ao galo produzido no tempo do António Ferro, e que depois teve um grande sucesso. Mas este também é uma peça incrível, uma estilização um bocado art déco."Cristo

"É um Cristo de grandes dimensões (60 cm de altura), muito ligado à tradição de Barcelos, porque é totalmente vidrado e porque não tem cruz. A cruz foi uma imposição do mercado: um dia, um comerciante de Lisboa encomendou-lhe 200 Cristos, mas exigiu que tivessem cruz, e a Sra. Rosa começou a fazê-los assim. Este tem um movimento de corpo muito bonito, do ponto de vista escultórico. E vê-se que o rigor da anatomia não é uma coisa que a preocupe muito: os braços são muito pequeninos, mas é uma desproporção muito pensada, para valorizar outras partes do corpo."

Alminhas

"É uma temática também corrente na obra da Sra. Rosa. É uma peça muito boa, porque se percebe que é totalmente feita por ela. Todos os elementos decorativos têm uma grande largueza, sem grande pormenor. Ela não tinha muito gosto nem paciência para a ornamentação; interessava-lhe mais a forma, a estrutura. Para decorar as peças, ela passava-as aos filhos e netos, que com ela trabalhavam. Esta peça é uma belíssima síntese da sua arte."

Rosa Ramalho -
A Colecção
Comissário: Alexandre Alves Costa
BARCELOS Museu
de Olaria. Tel.: 253824741
Bilhetes: 2,15 euros
Até Junho de 2010

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