O peso da regra

Uma das mais bonitas igrejas existentes em Portugal é em Peso da Régua, um sítio ao qual ninguém vai para ver arte. Trata-se da igreja da Misericórdia local. Nunca se ouviu falar do edifício, não há dele imagens decentes na Internet, não sei a data de construção nem o nome do arquitecto.

A igreja está já incluída no Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (que herdou o espólio da antiga Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais e continua a ser um dos melhores instrumentos de pesquisa patrimonial existentes em qualquer país do mundo). Mas não há imagens ou outra informação. "Arquitectura religiosa revivalista", esclarece sem hesitação o texto que, com esta singela frase, explica implicitamente porque é que um edifício tão bonito não parece interessar ninguém.

De facto, a igrejinha de Peso da Régua pertence ao período maldito da história da arquitectura ocidental: o século XIX (o edifício foi certamente construído no início do século XX mas na continuidade da arquitectura oitocentista). Toda a gente atira à cara do século XIX, como se fossem insultos, palavras como "revivalismo", "historicismo", "eclectismo". Edifícios da administração pública, tribunais, escolas, museus, teatros, igrejas, casas, toda a imensa produção da grande arquitectura do século da burguesia, a arquitectura que fez cidades como Paris ou Madrid, tudo isso é encarado pela elite da crítica e da historiografia arquitectónicas com ironia ou desprezo. Não era novo, diz-se, como se o novo fosse, por si, uma qualidade, como se a novidade fosse a regra do que é legítimo.

A igrejinha de Peso da Régua é nova em relação ao que se fazia antes. Não podia sê-lo em relação ao que só veio depois, o purismo modernista do século XX que estabeleceu a regra de que tudo tem de ser sempre novo. O arquitecto da Régua conhecia provavelmente o purismo. Não o interessou, como não interessou e continua a não interessar a vasta maioria das pessoas. E então?

A igreja tem telhado, uma cabeceira de braços semicirculares, molduras de pedra que evocam as arquitecturas românica ou bizantina, uma torre sineira com uma cobertura orientalista pintada de verde-esmeralda, belíssimos azulejos com motivos vegetais ou geométricos, vitrais em elegantes caixilhos de metal. O arquitecto, como todos os seus colegas da época, procurou - e conseguiu - fazer uma síntese harmónica de alguns temas da história da arquitectura, interpretados de uma maneira original. O edifício foi pensado para ser mais um elo de uma tradição multissecular.

Saberemos em breve, estou certo, quem fez a igreja e em que circunstâncias. O facto de ser muito bonita encorajará estudiosos e interessados. Talvez então o peso da regra seja retirado da frente dos nossos olhos e possamos, enfim, ver a igreja de Peso da Régua.

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