Uma nova “partitura” para o pé diabético também premiada

Médica do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa conseguiu resultados inéditos no país das amputações em diabéticos. O segredo é descomplicar.

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Luke MacGregor/Reuters

A médica Maria de Jesus Dantas ganhou o Prémio Bial de Medicina Clínica, no valor de 100 mil euros, por ter conseguido simplificar a resposta a um complicado problema de saúde. Usou vídeos, cursos de formação, plataformas de informação para doentes, aplicações nos telemóveis para médicos para melhorar o tratamento do pé diabético. E conseguiu. Em 2015, registou na consulta do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa a mais baixa taxa de sempre de amputação dita “major” em diabéticos no país, conseguindo menos de uma amputação (0,95) por 100 mil habitantes quando a taxa média nacional é de 3,4 por 100 mil habitantes.

Maria de Jesus Dantas foi apenas a maestrina de uma orquestra, composta por instrumentistas que podiam ser solistas nas suas áreas, que compôs uma partitura que parece ter sido um sucesso e que pode ser replicada em qualquer lugar. A metáfora musical é da autoria de Maria de Jesus Dantas que, em conversa com o PÚBLICO, faz questão de partilhar o mérito deste prémio da Bial com todos os membros da equipa com que trabalhou nos últimos quase 20 anos. “Isto é o resultado de um trabalho de equipa, com muita gente envolvida, desde enfermeiros e médicos de várias especialidades a técnicos de informática, entre outros, que se dedicaram a este projecto de forma altruísta, por vezes nas suas horas livres. Eu só fui o maestro a dirigir a orquestra”, conta.

A história deste trabalho começa em 1998 quando a cirurgiã foi desafiada a montar uma consulta do pé diabético no então Hospital Padre Américo (hoje chamado Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa). Seria a segunda consulta do pé diabético a ser criada no país e, por isso, Maria de Jesus Dantas foi observar os colegas que montaram a primeira, no Centro Hospitalar do Porto. Foi aí que aprendeu com a médica Beatriz Serra que o pé diabético é “um drama que se desenvolve silenciosamente dentro dos sapatos”. Nada melhor, portanto, do que uma nova partitura para quebrar este perigoso silêncio.

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A médica Maria de Jesus

“A maior parte das pessoas não sabe que a amputação major [ao nível da coxa, perna ou tornozelo] mata mais do que a maioria dos cancros, excepto o cancro do pulmão e pâncreas”, alerta Maria de Jesus Dantas, explicando que, nesta fase, estes doentes têm também outras patologias associadas e encontram-se com a saúde num estado muito frágil. Mas mais do que o que acontece após uma amputação – o último recurso quando já se tentou tudo antes –, o importante é evitá-la. E Maria de Jesus Dantas identificou e aplicou muitas formas simples de o fazer. As principais condições para garantir o sucesso dessas medidas são informar o doente e ouvi-lo. É essencial que o doente diabético saiba que é importante olhar para os seus pés, mesmo que não os sinta.

Pedras no sapato

“Vi coisas impressionantes. Os doentes diabéticos perdem a sensibilidade nos pés e muitas vezes não sentem as marcas, agressões e úlceras. Daí tratar-se de um problema que cresce silenciosamente dentro dos sapatos”, refere a médica.

A informação e apoio dos doentes é fundamental. Na plataforma Pediab está toda a informação. Nos vídeos quem fala são os próprios doentes diabéticos que repetem o que aprenderam. Que é importante lavar os pés todos os dias, inspeccioná-los cuidadosamente, limpar com uma toalha clara que denuncia qualquer ferida ou lesão, usar meias claras de algodão ou lã, hidratar e não usar botijas, braseira, aquecedores ou outras fontes de calor directas nos pés, entre outros conselhos. “Temos de recrutar os doentes e cuidadores para o nosso lado”, diz.

A médica frisa que muitas vezes a situação económica e social do doente é o seu principal inimigo. Lembra-se, por exemplo, do caso de um doente que usou uma garrafa de coca-cola com água quente para colocar entre os pés frios, como uma botija. O resultado foram queimaduras de terceiro grau nos dois membros. E coisas tão simples como os sapatos? “Há doentes que andam com objectos dentro dos sapatos, a ferir os pés, durante dias e sem os sentir.” O acesso a um par de sapatos especial para estes doentes pode demorar muitos meses. “Mas se pensarmos que um par destes sapatos custa 100 euros e o tratamento de uma infecção pode custar em média sete mil euros e uma amputação cerca de 25 mil euros, é fácil de perceber que compensa”, conclui.

Maria de Jesus Dantas tem a especialidade de cirurgia geral e apenas reserva uma manhã e uma tarde da sua semana para a consulta do pé diabético. É o suficiente, constata, sobretudo quando a resposta se faz com muitos outros profissionais a colaborar. Faz cursos dirigidos a profissionais de saúde para mostrar o que tem aprendido ao longo dos anos, para mostrar esta nova partitura tão simples. “Este modelo assistencial é replicável e a custo zero, é uma questão de reorganizar as pessoas”, avisa, ambicionando fazer desta experiência “um tecido vivo”.

E recorda que num serviço com cerca de quatro mil consultas por ano conseguiu “nos últimos cinco anos, taxas de amputação major em diabéticos muito abaixo da média nacional, culminando na mais baixa taxa de sempre da consulta multidisciplinar de pé diabético do centro hospitalar e do país, até à data com 0,95 por 100 mil habitantes”. De acordo com o mais recente relatório do Observatório Nacional da Diabetes, a média nacional de amputações major tem vindo progressivamente a descer e em 2015 era de 5,5 por 100 mil habitantes, sendo que na região Norte baixava para os 3,4 por 100 mil.

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