Uma cidadania científica partilhada

A integração das ciências “duras” tradicionais com as ciências sociais e humanas e com o próprio universo criativo das artes e humanidades criou um novo paradigma de conhecimento.

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Ligações nervosas do cérebro humano: imagem obtida no laboratório de Hanna e António Damásio, no Instituto do Cérebro e da Criatividade (Califórnia, EUA) DR

Foi precisamente há 30 anos que José Mariano Gago foi nomeado presidente da JNICT [Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica] e que nessa sua qualidade propôs para Portugal um novo paradigma de política científica: juntar às chamadas ciências “duras”, tanto fundamentais como aplicadas, a “insustentável leveza” das ciências sociais e humanas.

Não foi um gesto pacífico, para nenhuma das partes envolvidas. Em particular porque se ressuscitava contra as ciências sociais e humanas o velho argumento da sua suposta fragilidade essencial: o facto de o observador nelas ser ao mesmo tempo o objecto observado. Esta ausência de distanciação contaminaria assim, à partida, todo o processo científico, introduzindo nele, alegadamente, a perturbação de uma incontrolável subjectividade.

O processo de aceitação dos novos parceiros foi, por conseguinte, gradual e lento, mas pouco a pouco nós, investigadores das ciências sociais e das humanidades, lá fomos provando que sabíamos comer com faca e garfo à mesa selecta da boa Ciência estabelecida: produzíamos epistemologias exigentes, construíamos modelos teóricos sofisticados, aplicávamos metodologias rigorosas às hipóteses que levantávamos, e pelo menos, a um nível mais comezinho, recheávamos as nossas teses de um copioso e reconfortante acervo de notas de rodapé.

Começámos deste modo a ser visitas da casa da Ciência respeitável, mesmo que ainda recebidos com alguma estranheza, se não mesmo com alguma desconfiança. Embora eu próprio seja com frequência crescente convidado, enquanto musicólogo e historiador cultural, a participar em eventos de debate científico multidisciplinar, tenho plena consciência de que a minha presença neles se tende a revestir ainda, para muitos dos demais participantes, de uma certa aura de exotismo – em geral traduzida numa expectativa inicial de um momento de alguma ligeireza artística, e só em seguida numa constatação final de surpresa pela coincidência inesperada dos problemas teóricos e metodológicos de fundo entre a minha esfera de trabalho e a das disciplinas do cânone científico tradicional.

Ainda para mais, o processo assim iniciado foi-se radicalizando nas décadas subsequentes. A porta entreaberta depressa se escancarou para deixar entrar no reduto sagrado das ciências tradicionais, já não só as ciências que se debruçavam sobre as áreas das artes e humanidades, mas as próprias artes e humanidades. As universidades e os centros de investigação cada vez se vão abrindo mais às práticas criativas como terrenos legítimos, elas próprias, de produção de saber e de compreensão do universo, da sociedade e do homem.

Diga-se, de passagem, que nem sempre essa transição se fez da melhor maneira. Na sua ânsia de respeitabilidade científica e académica, quer as ciências sociais e humanas, quer, por maioria de razão, as artes e humanidades optaram por vezes por violentar a sua própria natureza, absorvendo mal e apressadamente modelos operatórios das ciências exactas que não se adequavam nem ao seu objecto nem à sua prática específica. Mas, apesar dos tropeços do caminho, a dinâmica estava lançada, e no seu conjunto tem vindo a demonstrar virtualidades inegáveis para o nosso tecido científico em geral.

Por outro lado, o próprio campo das ciências “duras” tem-se vindo a alargar de forma crescente – como o provam, designadamente, os contributos e Hanna e António Damásio – à valorização do papel da intuição e da criatividade no próprio núcleo duro do pensamento científico, como factores essenciais de inovação, tanto para a identificação de novos objectos de estudo e para a formulação de novas perguntas a colocar a esses novos objectos e aos já conhecidos, como para o desenvolvimento de novos modelos de teste e de fundamentação das hipóteses formuladas.

A título de mero exemplo, recordo apenas a recente exposição de Robert Zatorre, neurocientista da Universidade de McGill, ao colóquio Brain.org, na Fundação Calouste Gulbenkian, em que demonstrava como as circunvoluções cerebrais associadas à percepção auditiva não são estáveis, mas, pelo contrário, se reconfiguram pela própria experiência concreta continuada dos padrões de audição musical por parte de cada indivíduo estudado, e portanto pelos diferentes parâmetros culturais que condicionam essa experiência, caso a caso. Ou seja, o hardware cerebral é, inevitavelmente, reformatado pelo software cultural da experiência artística. Foi uma mensagem que me marcou.

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José Mariano Gago (1948-2015), físico e político Nuno Ferreira Santos

Podemos, por isso, concluir com segurança que esta interpenetração dinâmica da ciência e da cultura se revelou como um factor incontornável do conhecimento no século XXI. Era essa a visão de José Mariano Gago.

A contra-reforma do STEM

Mas o combate está longe de se poder considerar ganho. O impacto da crise económica global dos últimos anos tem levada à diminuição generalizada do investimento público em investigação e desenvolvimento, afectando sobretudo as áreas de pesquisa com menor susceptibilidade de auto-sustentação no mercado. Neste contexto recessivo temos assistido, efectivamente, de forma por vezes alarmante, a uma espécie de contra-reforma militante que procura promover o regresso a um cânone restrito do que seria o “verdadeiro” conhecimento científico – o chamado “STEM”, acrónimo derivado da sequência disciplinar Science Technology Engineering Mathematics.

Pretende-se assim reestabelecer a velha hierarquia dos saberes a partir de critérios como a utilidade económica imediata ou mesmo a empregabilidade potencial dos agentes de cada ramo de pesquisa, e deste pressuposto têm derivado iniciativas preocupantes no domínio das políticas científicas e educativas públicas. Basta ter em conta algumas das propostas recentemente debatidas, a este respeito, nas Legislaturas do Texas e da Florida, que defendem a supressão, pura e simples, do financiamento público aos programas académicos e aos projectos de investigação no terreno das artes e das humanidades. Tanto estas como as ciências que as estudam seriam, nesta óptica, actividades de mera auto-gratificação, desprovidas de valor social e artificialmente subsídio-dependentes, isto é, em última análise, inúteis.

Portugal não ficou imune a esta corrente de pensamento neoliberal, que num passado recente conduziu, nomeadamente, à quase exclusão da educação artística e cultura do curriculum nuclear geral do ensino básico e secundário, à redução drástica do apoio ao ensino artístico vocacional, à ameaça severa às graduações e pós-graduações em artes e humanidades e a uma verdadeira ofensiva sem precedentes contra a própria sobrevivência das unidades de investigação em ciências sociais e humanas.

E é importante sublinhar, pelos equívocos graves que isso criou, a forma como esta ofensiva se procurou fundamentar em pretextos falaciosos, envoltos numa capa ilusória de suposta prossecução da “excelência” científica e académica. Aplicaram-se ao sector critérios de bibliometria manifestamente inadequados à especificidade da pesquisa nestes campos, constituíram-se júris em muitos casos sem qualquer experiência ou autoridade reconhecidas nas áreas temáticas concretas neles abordadas, e sobretudo demonstrou-se uma insensibilidade grosseira para com as necessidades de enraizamento gradual e de criação progressiva de massa crítica científica em disciplinas que, em muitos casos, se encontravam ainda em fases embrionárias de implantação no tecido universitário português, impedindo-as, na prática, de alguma vez poderem vir a atingir, consolidadamente, o patamar de excelência proclamado.

Tratou-se, acima de tudo, de um tremendo desperdício de todo o investimento público aplicado nestes campos ao longo das duas décadas anteriores. Mas o desperdício verificou-se igualmente ao nível do próprio enquadramento conceptual de fundo daquilo que hoje se entende por conhecimento. Se regressarmos ao paradigma das neurociências e à distribuição dos diferentes processo cognitivos entre os dois hemisférios cerebrais – a aquisição e gestão sistemáticas da informação, a sequenciação lógica, o pensamento linear, a formulação de modelos simétricos previsíveis no hemisfério esquerdo, a criatividade, a associação instintiva, a invenção, a descoberta ou a surpresa no direito –, então esta prioridade absoluta conferida às disciplinas do STEM parece sobrevalorizar de forma desproporcionada os processos cognitivos genericamente associados aos valores do rigor e desperdiçar de forma imprudente os que potenciam os valores da inovação, ou, numa síntese assumidamente simplista, maximizar as funções residentes no lado esquerdo do cérebro face às localizadas do lado direito, sem perceber a interdependência profunda entre ambas.

Era precisamente a este segundo desperdício mais amplo que se referia o historiador Alan Brinkley, que foi entre 2003 e 2009 o provost da Universidade de Columbia, quando parafraseava o célebre lema adoptado pelo United Negro College Fund em 1972, em plena campanha da luta pelos direitos civis – “ A mind is a terrible thing to waste” – modificando-o a propósito da necessidade de integração holística dos diferentes ramos do conhecimento: “Half a mind is a terrible thing to waste”. E, no mesmo sentido, em 2005 um dos gurus das novas teorias da gestão empresarial, Daniel Pink, aplicando esta mesma noção ao campo da economia, dava ao seu livro A Whole New Mind um subtítulo assumidamente provocatório: Why Right-Brainers Will Rule the Future.

Para Pink, a história económica dividir-se-ia em quatro eras – a Era Agrícola, a Industrial, a da Informação, e por último a dos nossos dias, que seria a Era Conceptual. Nesta, face à superabundância da oferta e da concorrência à escala planetária, o sucesso da procura e o consequente valor de mercado de cada novo produto dependeria já não apenas da sua estrita funcionalidade mas de um conjunto de factores directamente associados à criatividade e à mais-valia gerada por diversas dimensões simbólicas contextuais – o design, a história, a sinfonia, a empatia, o jogo e o significado.

Mais uma vez, a aparente objectividade estanque de uma suposta economia “pura” se apresenta inevitavelmente contaminada por factores de subjectividade que relevam todos eles, em última análise, do foro cultural. Só assim se explica, nomeadamente, que a cultura represente já hoje cerca de 4,5 % do PIB e 4% do emprego na Europa, e que estas percentagens tendam a subir exponencialmente.

Compreende-se, deste modo, a falácia dos critérios de pretensa “utilidade económica” que têm caracterizado algumas das políticas científicas neoliberais dos últimos anos, segundo as quais haveria que dar clara prioridade às ciências aplicadas, geradoras de patentes potencialmente lucrativas, em prejuízo sistemático das ciências ditas “puras”, que seriam, nesta óptica, um fim em si mesmas e por isso mesmo, por definição, economicamente improdutivas. Do mesmo modo que nas políticas culturais se deveria privilegiar as chamadas “indústrias culturais”, vocacionadas para o impacto alargado no grande público e enquanto tal geradoras, por excelência, de oportunidades de emprego e de mais-valias acrescidas, em desfavor das vanguardas artísticas experimentais, alegadamente restritas a elites auto-centradas e como tal desprovidas de valor – é, de resto, a visão que se encontra plasmada, por exemplo, nos pressupostos do programa Europa Criativa, que veio substituir na União Europeia os objectivos mais explicitamente culturais do anterior programa Cultura 2000.

Ciência, cultura, conhecimento

Pelo contrário, no entanto, o que é cada vez mais evidente nas sociedades e economias desenvolvidas é que não há ciências aplicadas sem ciências “puras”, que não há patentes comerciais sem investigação fundamental que as viabilize, que não há indústrias culturais dinâmicas sem prévia experimentação estética de ponta, e que em qualquer concepção moderna de desenvolvimento económico e social estes dois pólos da reflexão teórica e da aplicações prática têm de estar em permanente interacção, sem o que – para utilizar uma metáfora clássica – a teoria se pode tornar estéril e a prática pode ficar cega.

Mas independentemente deste “outcome” económico, é no próprio cerne do pensamento científico que esta interdependência incontornável das ciências exactas tradicionais, por um lado, e das ciências sociais e humanas e das artes e humanidades, por outro – ou, se preferimos, da ciência e da cultura como vertentes indissociáveis da produção de conhecimento –, se revela cada vez mais evidente.

Em 2009, no seu livro Sparks of Genius: The Thirteen Thinking Tools of the World’s Most Creative People, o fisiólogo Robert Root-Bernstein e sua mulher, Michelle, chamam a atenção para o facto de cerca de 150 dos mais inovadores protagonistas da história da ciência e da tecnologia, desde Galileu e Kepler a Morse e Einstein, se caracterizarem por terem, todos eles, a par com a sua actividade estritamente científica, uma intensa dedicação às áreas da criação artística ou literária. A partir desta constatação os autores identificam um conjunto de ferramentas daquilo que designam por “pensamento criativo” e que propõem como sendo transversais à reflexão, quer em ciência, quer em cultura: Observing Imaging Abstracting Recognizing Patterns Forming Patterns Analogizing Body Thinking Empathizing Dimensional Thinking Modeling Playing Transforming Synthesing.

O modelo é tentador e pode ajudar-nos a compreender até que ponto, nomeadamente na perspectiva dos tradicionais parâmetros dos quatro “C” da eficácia (Creativity Critical Capacity Communication Collaboration), a Orquestra Filarmónica de Berlim ou o Wuppertal Tanztheater de Pina Bausch apresentam flagrantes paralelismos de escala, de complexidade, e de inovação com o acelerador de partículas do CERN. Em todos estes casos, com efeito, estamos perante empreendimentos de excelência que assentam na passagem da rotina à inovação, da uniformidade à diferença, da massificação à originalidade, da segurança castradora ao risco da descoberta, da previsibilidade à surpresa, das categorias estanques à interacção dinâmica de conceitos e práticas diversificadas, do curto prazo ao médio e longo prazo, da visão micro à visão macro. E por isso mesmo todos eles resultam, ainda que na esfera específica de cada um, de uma mesma postura epistemológica holística e criativa.

Sobre esta interacção virtuosa das várias vertentes do conhecimento, Deborah K. Fitzgerald, dean dos estudos de pós-graduação do MIT – porventura o mais inquestionavelmente “útil” dos centros de formação e investigação científica –, escrevia em 2014: “No MIT – um bastião da educação no domínio dos STEM – consideramos que as humanidades, as artes e as ciências sociais são essenciais tanto para formar grandes engenheiros e cientistas, como para sustentar a nossa capacidade de inovação. (…) Da mudança climática à pobreza e à doença, os desafios do nosso tempo são inevitavelmente humanos na sua natureza e na sua escala, e as questões da engenharia e da ciência estão sempre mergulhadas em realidades humanas mais amplas, desde tradições culturais profundamente enraizadas a normas de construção civil e a tensões políticas. Por isso os nossos estudantes precisam também de adquiri um conhecimento aprofundado das complexidades humanas – as realidades políticas, culturais e económicas que moldam a nossa existência –, bem como fluência nas poderosas formas de pensamento e de criatividade cultivadas pelas humanidades, as artes e as ciências sociais. O curriculum do MIT evoluiu significativamente nos últimos 50 anos para exigir a todos os nossos estudantes do primeiro ciclo universitário que dediquem tempo substancial a temáticas como a literatura, as línguas, a economia, a música e a história. Na verdade, todos os alunos de graduação do MIT têm de frequentar, no mínimo, oito cadeiras nestas áreas – cerca de 25% de todo o seu percurso lectivo.”

E Paul Smith, actual director do British Council nos Estado Unidos, corrobora a urgência desta mesma perspectiva integrada dos saberes: “O progresso socioeconómico, os desafios do desenvolvimento e a abordagem inteligente de questões complexas requerem uma combinação de capacidades adquiridas que derivam das humanidades, das ciências sociais e dos STEM, para tornar possível a produção de respostas holísticas e que tomem em consideração a totalidade dos dados em presença.”

Útil inútil e vice-versa

A integração das ciências “duras” tradicionais com as ciências sociais e humanas e com o próprio universo criativo das artes e humanidades, ainda que com a necessária salvaguarda da especificidade própria de cada uma das partes, estabeleceu, pois, um novo paradigma de conhecimento, sem o qual cada ramo isolado abdicaria, afinal, de uma boa parte da sua própria capacidade de intervenção original. À luz deste novo paradigma, verifica-se, pois, bem vistas as coisas, a inutilidade de alguns saberes “úteis”, quando isolados no seu casulo; a utilidade de alguns saberes “inúteis”, sobretudo quando potenciados pelo diálogo interdisciplinar; a transversalidade e a interdependência essenciais dos diferentes saberes; a complementaridade indissociável da investigação fundamental e aplicada em qualquer dos campos em jogo.

Num contexto social e político em que do desespero e do populismo que o sabe tão bem explorar tem vindo a emergir uma crescente desvalorização do papel do conhecimento – e, porque não dizê-lo, da sabedoria –, a resposta da comunidade científica tem de ser cada vez mais conjunta e de envolver todos os ramos do saber, da investigação e da reflexão. É essa, também, a herança de José Mariano Gago, aquela que nos permite hoje reunirmo-nos aqui precisamente enquanto tal – como uma comunidade do saber.

Mas o legado de José Mariano Gago vai mais longe, ao lembrar-nos de que a prossecução do conhecimento, em qualquer ramo, não é um gesto asséptico isolado do contexto social mais amplo em que se processa e livre das responsabilidades de solidariedade humana que este implica. E que essa missão não faz sentido se não estiver submetida a um forte imperativo ético e cívico, que contraponha ao primado neoliberal do valor de troca como único critério de utilidade social a construção de valores mais nobres: os do Bom, do Belo e do Justo.

É também nesse imperativo moral comum que nos encontramos, vindos de campos de trabalho tão distintos, e é ele que dá coerência última à nossa teia intrincada de saberes interdependentes, tão frágeis quando pulverizados como redobradamente pujantes quando se sabem interligar. No século XXI, qualquer política consistente de promoção integrada de produção do saber e da sua translação alargada para a sociedade não pode deixar de assentar, antes de mais, na assunção deste princípio natural de cidadania científica partilhada.

Keynote address de encerramento do “Encontro com a Ciência e Tecnologia em Portugal – Ciência 2016”, promovido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa; Programa Gulbenkian de Língua e Cultura Portuguesas, Fundação Calouste Gulbenkian

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