Terá a Bíblia começado a tornar-se um livro há mais de 2600 anos?

A Bíblia hebraica terá sido compilada antes ou depois da destruição de Jerusalém (e do Primeiro Templo), em 586 a.C.? Este velho e importante debate poderá agora beneficiar de provas concretas graças aos computadores.

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Estes fragmentos de cerâmica (óstracos) da fortaleza de Arad, com inscrições em hebraico, datam de 600 anos antes da nossa era Cortesia de Michael Cordonsky (fotógrafo)/Universidade de Telavive/Autoridade das Antiguidades de Israel
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As ruínas da fortaleza de Arad, no deserto do Neguev Acer11/Wkimedia Commons
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Reconstituição artística da fortaleza de Arad Mboesch/Wkimedia Commons

A maioria dos especialistas concorda em dizer que os textos-chave do Antigo Testamento começaram a ser escritos no século VII antes da era cristã. Mas quando é que teve início a compilação desses textos – ou seja, quando é que a Bíblia começou a adquirir a forma de um livro, tal como hoje a conhecemos? Aqui, as opiniões divergem entre os que pensam que terá sido antes da destruição do Primeiro Templo de Jerusalém e os que acham isso só aconteceu depois.

Agora, uma equipa de investigadores israelitas teve uma ideia original para tentar contribuir para a resolução deste debate, que dura há décadas e é considerado crucial pelos especialistas. E, com base nos seus resultados, estes cientistas afirmam que o mais provável é que a Bíblia tenha começado a ser composta há cerca de 2600 anos – ou seja, antes da destruição de Jerusalém na sequência do cerco à cidade, em 587 a.C., pelo exército do rei babilónio Nabucodonosor II.

Mas o trabalho que estes cientistas realizaram não tem na realidade a ver directamente com a Bíblia, mas antes com o nível de literacia que existia no reino de Judá (930 a.C. - 586 a.C.) antes da sua queda. O estudo, que contou com a participação de historiadores, arqueólogos, físicos e matemáticos, foi publicado numa das últimas edições da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Essencialmente, o que Israel Finkelstein e Eliezer Piasetzky, da Universidade de Telavive e os seus colegas quiseram determinar foi o nível de literacia que existia por volta de 600 anos antes da nossa era na população geral de Judá. Segundo eles, para um empreendimento tão “monumental” como a compilação dos textos bíblicos ter sido possível naquela altura, tinha de existir uma taxa suficiente de literacia. Se apenas uma minúscula elite fosse letrada, salientam, a tarefa não teria sido exequível por falta de “mão de obra”, por assim dizer.

“Existe uma acesa discussão em torno do momento em que teve lugar a compilação de uma massa crítica de textos bíblicos”, explica Finkelstein em comunicado da sua universidade. “Mas para responder a essa pergunta, temos de colocar uma outra, mais abrangente: quais eram as taxas de literacia em Judá no fim do período do Primeiro Templo? E quais foram essas taxas mais tarde, sob o domínio persa?”

Calcular taxas de literacia de tempos tão recuados parece irrealista, embora os cientistas israelitas não sejam os primeiros a tentar fazê-lo. Mas desta vez, a equipa parece ter encontrado uma forma empírica de obter uma estimativa através de programas informáticos que recorrem à inteligência artificial.

Os óstracos de Arad

Os cientistas escolheram para análise uma série de 16 inscrições em hebraico, feitas com tinta na superfície de um conjunto inicial de 100 cacos de cerâmica (chamados “óstracos”). Esses fragmentos, vindos de objectos diversos, eram normalmente usados para escrever por serem mais baratos e duráveis do que o papiro ou o couro. Diga-se de passagem que a origem da palavra “ostracismo” – punição aplicada no sistema político da antiga Atenas e que, por votação, forçava ao exílio os dirigentes considerados uma ameaça para a democracia – deve-se ao facto de terem sido usados óstracos para os votantes tomarem a sua decisão…

Quanto aos óstracos agora analisados, esses foram descobertos há umas décadas durante escavações na fortaleza militar de Arad, situada em pleno deserto no Sul de Judá (na fronteira com o antigo reino de Edom) e datam de uns 600 anos antes da era cristã.

Longe de se tratar de textos religiosos, as incrições que apresentam têm a ver com assuntos do dia-a-dia naquele remoto local há 2600 anos, como questões de aprovisionamento (autênticas listas de compras), de movimentos de tropas ou simplesmente um rol de presenças. E os cientistas mostraram que esses textos tinham sido escritos por várias pessoas.

Para isso, os matemáticos Piasetzky, David Levin e Elie Turkel começaram por reconstituir imagens das letras (do alfabeto aramaico) plasmadas nos óstracos. E a seguir, utilizaram um algoritmo de inteligência artificial para determinar as diferenças pessoais de caligrafia entre as diversas frases que tinham reconstituído. E de facto, detectaram a mão de pelo menos quatro autores diferentes (e talvez seis) – um número que, dado o isolamento e a pequena dimensão da fortaleza é sem dúvida elevado.

“Criámos um algoritmo que nos permite distinguir a escrita de diferentes autores e um mecanismo estatístico para avaliar os nossos resultados”, explica Barak Sober no mesmo comunicado, o co-autor que analisou os resultados fornecidos pelo algoritmo juntamente com os seus colegas Shira Faigenbaum-Golovin e Arie Shaus, da mesma universidade. “A nossa análise permitiu concluir que as inscrições não podiam ter sido escritas por uma única pessoa.”

Os cientistas também excluíram, com base no conteúdo textual das inscrições, que elas não terão sido feitas por escribas, mas pelos envolvidos na correspondência. Isto porque, afirmam, pelo menos duas das inscrições, que parecem ser listas de presença dos residentes do forte, foram mesmo realizadas, in situ, em Arad. Ora, a presença de dois escribas entre o punhado de soldados – cerca de 30 – que a pequena fortaleza podia albergar é muito improvável.

“A afirmação concorrente de que os óstracos teriam sido escritos por escribas profissionais pode ser posta de parte com dois argumentos”, lê-se no artigo na PNAS: “A existência de dois autores diferentes na minúscula fortaleza de Arad e o contexto textual, que mostra que o destinatário deverá ter sabido [ler] e escrever.” E dão como exemplos o óstraco número 7, que ordena: “escreve-o antes de…” e o número 40, onde o autor menciona ter escrito uma carta.

Mas há mais: a literacia, sugerem os resultados, não se limitava aos oficiais de alta patente. É que os cientistas também identificaram, graças ao conteúdo textual, a posição dos autores das inscrições na hierarquia militar da fortaleza. E descobriram assim que, para além dos altos oficiais, até o intendente do forte (identificado nos óstracos pelo seu nome, Eliashib) e o seu ajudante eram letrados.

Segundo a equipa, pode-se supor que a situação no forte de Arad não terá sido invulgar em Judá naquela altura. “Por outras palavras [os resultados sugerem] que toda a estrutura militar, dos oficiais de alta patente aos humildes intendentes subalternos dos pequenos postos militares do deserto, longe do centro, era letrada, no sentido de serem capazes de comunicar por escrito”, concluem.

E extrapolando para a totalidade do reino, acrescentam: “Podemos pensar que um número significativo de indivíduos letrados vivia em Judá por volta de 600 a.C.” E que para isso ser possível, especulam ainda, “deverá ter existido em Judá, no fim do período do Primeiro Templo, um sistema de ensino adequado”.

É precisamente este nível de literacia e o sistema de ensino que o sustenta que formam, escrevem ainda na PNAS, “um pano de fundo adequado para a composição de obras ambiciosas como o Deuteronómio [o quinto livro da Bíblia] e a história antiga de Israel dos livros de Josué a Reis”. Donde os cientistas deduzem que é isso mesmo que terá acontecido: “Encontrámos indícios indirectos da existência de um sistema de ensino que poderá ter permitido a compilação de textos bíblicos”, diz Piasetzky no comunicado.

“Pensamos que, num reino com cerca de 100.000 habitantes, pelo menos várias centenas terão sido letrados”, acrescenta Finkelstein no mesmo documento. No entanto, Finkelstein disse ao PÚBLICO num email que, no artigo, tinham “propositadamente evitado dar números” – talvez porque qualquer estimativa teria sido demasiado especulativa.

Algum cepticismo

Todavia, muitos especialistas pensam, como já foi referido, que a compilação da Bíblia terá começado mais tarde. Após a conquista de Judá, grande parte do povo judeu, e em particular a sua elite, foi levada para o exílio na Babilónia (o actual Iraque). E em 539 a.C., aquando da conquista de Babilónia pelos persas, Judá tornou-se uma província persa e só uma parte dos exilados judeus regressou a Jerusalém. Ora, segundo esses especialistas, a primeira compilação dos textos bíblicos só terá começado durante o exílio – com o objectivo de preservar a memória da história dos judeus – ou ainda mais tarde, em Judá, no período persa.

Os próprios autores do estudo admitem aliás que deveriam ter comparado o nível de literacia em Judá há 2600 anos com os níveis que se verificaram nos séculos seguintes, tanto em Jerusalém como na Babilónia (onde muitos judeus permaneceram, pois trata-se de “um período em que outros textos bíblicos foram escritos” nesses locais, segundo recentes estudos textuais, lê-se na PNAS.

Mas essa comparação não foi exequível, argumentam, porque durante os 300 anos que se seguiram à destruição do Primeiro Templo, “não foi encontrada nem em Jerusalém nem nas terras altas do Sul (...) nenhuma inscrição em hebraico que possa ser rigorosamente datada”. Este é um enigma que, segundo eles, continua por resolver.

Porém, mais uma vez, esta ausência de textos pode abonar em favor da hipótese de que a primeira grande compilação da Bíblia terá acontecido ainda durante o período do Primeiro Templo. “A seguir à queda de Judá”, diz Finkelstein no já referido comunicado, “houve uma grande lacuna na produção de inscrições hebraicas até ao século II antes de Cristo, que é o período seguinte onde voltaram a existir amplas provas de uma expansão da literacia”. E conclui: “Isto reduz a probabilidade de uma compilação substancial de literatura bíblica ter sido realizada em Jerusalém entre 586 e 200 anos a.C.”

Seja como for, a taxa de literacia patente em Judá há 2600 anos avançada por Finkelstein – que corresponde a menos 1% da população – parece ridiculamente baixa quando comparada com as taxas de literacia actuais, mesmo nos países mais desfavorecidos. Mas também não se deve esquecer que a literacia só realmente se generalizou muitos séculos mais tarde. Aliás, como escreveu Catherine Hezser, especialista de estudos judaicos na Universidade de Londres, num livro publicado em 2001, no tempo de Jesus apenas uns 3% dos judeus da Palestina terão sido letrados – sendo que “letrado” significa apenas que conseguiam ler e talvez escrever o seu nome e copiar palavras.

Há um facto inegável: no tempo de Jesus, a Bíblia hebraica já estava compilada. Uma prova disso é que os Manuscritos do Mar Morto, um conjunto de rolos de pergaminho descobertos entre 1946 e 1956 em Qumran, na Cisjordânia – e considerados como a mais antiga versão da Bíblia hebraica – têm mais de 2000 anos. 

Mas terá a difusão da literacia revelada pelos óstracos de Arad, que parece de facto excepcional para a época, sido suficiente – ou mesmo necessária – para criar condições propícias à compilação da Bíblia?

A questão do nível de literacia como condição sine qua non para a compilação da Bíblia não é consensual. Entrevistado há dias pelo jornal The New York Times, Edward Greenstein, da Universidade de Bar-Ilan (Israel), pensa que “os textos bíblicos não precisam de ter sido escritos por muitas pessoas, ou lidos por muitas pessoas, para terem sido escritos”. Talvez, acrescenta, tenham sido registados por escribas principalmente como auxiliares de memória, num mundo onde esses textos ainda estavam ser transmitidos oralmente.

Christopher Rollston, reputado especialista em inscrições antigas da Universidade de George Washington (EUA), também não se mostra convencido. “Na realidade, não sabemos quantos óstracos terão sido produzidos em Arad”, disse ao diário online The Daily Beast. “Em vez de constituir um indício de uma ‘proliferação da literacia’, acho que as inscrições revelam que numa dada fortaleza militar havia pessoas que sabiam ler e escrever… um escriba militar e oficiais de patente elevada.”

Contudo, nada impede pensar que, após esta primeira utilização de software de inteligência artificial neste contexto, a abordagem possa vir a fornecer, no futuro, mais indícios concretos para esclarecer o debate. “Até aqui, todos os argumentos [acerca da compilação da Bíblia] eram baseados nos textos e eram todos relativos” diz Finkelstein, citado pelo diário israelita Haaretz. “Não existia uma cronologia absoluta. O que precisamos de fazer agora é passar para o campo dos estudos empíricos. E em Arad, temos finalmente uma oportunidade de atacar a questão de forma empírica.”

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