Tédio, para que te quero?

Ninguém gosta de se aborrecer. Isto é tanto assim que fazemos tudo (mesmo tudo) para escapar ao tédio. O estudo deste estado mental começou agora a envolver as neurociências e promete não ser nada entediante.

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Pormenor do quadro Madona Sistina, de Rafael DR

Imagine a seguinte situação. Você vai participar como voluntário/a numa experiência de psicologia. A tarefa que tem pela frente parece trivial: tem de permanecer sentado/a numa salinha de paredes nuas, durante 15 minutos, consigo próprio por única companhia. Não pode levar consigo telemóveis, televisores, computadores, jornais, revistas, nem papel e lápis para se entreter ou distrair. E também não pode adormecer. Tudo o que pode fazer é olhar para as paredes e… pensar.

É-lhe contudo permitido fazer uma coisa durante esse período de ócio – mas só se e quando lhe apetecer: carregando num botão, pode infligir a si próprio/a um ligeiro choque eléctrico, equivalente àquelas descargas de electricidade estática que por vezes se apanham ao mexer num objecto metálico.

Antes de iniciar a experiência, os participantes tiveram a oportunidade de sentir na pele o desconforto produzido pelo choque – e a maioria declarou-se disposto/a a pagar para evitar receber um novo choque desses.

A reacção tem lógica: quem não acharia irracional o desejo de sentir outra vez algo de tão desagradável quando a tarefa que tem pela frente parece tão, mas tão inócua, em comparação?

Desengane-se. O mais provável é que, tal como a maioria dos outros participantes que juraram não querer repetir a experiência do choque eléctrico, antes de emergir da salinha, um quarto de hora mais tarde, você tenha carregado no fatídico botão… e talvez até mais do que uma vez.

Estes surpreendentes resultados foram revelados, em 2014, num estudo publicado na revista Science pelo psicólogo Timothy Wilson, da Universidade da Virgínia (EUA), e colegas. Mais precisamente: 12 dos 18 homens (67%) e seis das 24 mulheres (25%) testados preferiram receber choques eléctricos a não ter nada para fazer (a não ser pensar) durante a sua curta permanência em isolamento forçado.

“O mais notável”, escreveram na altura os autores, “é que o facto de estar simplesmente a sós com os seus próprios pensamentos durante 15 minutos era aparentemente tão insuportável que levou muitos participantes a auto-administrar um choque eléctrico apesar de terem anteriormente declarado que estavam dispostos a pagar para o evitar”.

Por que é que isto aconteceu? A ideia dos (ainda) raros especialistas que estudam este tipo de fenómenos é que o que está aqui subjacente é nada mais, nada menos do que a nossa aversão pelo tédio. Por alguma razão, não ter nada para fazer é o pior que nos pode acontecer.

No trabalho da equipa de Wilson, a questão do tédio não era explicitamente levantada. Mas em 2015, Chantal Nederkoorn e colegas, do Departamento de Psicologia e Neurociências da Universidade de Maastricht (Holanda), realizaram um estudo semelhante cujo objectivo era assumidamente determinar se o tédio induzido nas pessoas pelo visionamento de um vídeo monótono e repetitivo poderia promover o consumo de guloseimas – e mesmo a auto-administração de choques eléctricos por parte dos participantes. Os seus resultados, publicados na revista Appetite, corroboram o estudo norte-americano e incluem explicitamente o tédio na equação: “As pessoas podem estar dispostas a procurar estímulos negativos, por exemplo a magoarem-se, só para fugir ao tédio”, concluíam os autores.

O tédio tem acompanhado os seres humanos ao longo dos séculos, como atestam a literatura, a arte e a filosofia. Mas a primeira abordagem científica da questão data de 1885, num curto artigo, publicado na revista Nature pelo ímpar Francis Galton, primo de Charles Darwin e um dos pais da estatística moderna, entre muitas outras coisas.

No texto, intitulado Medir a irrequietude (The measure of fidget), Galton relatava como tinha passado o tempo, durante uma palestra particularmente chata, a imaginar uma forma objectiva de calcular o estado de aborrecimento da assistência. E concluía: “Gostava de sugerir aos filósofos praticantes, quando as reuniões em que participam se revelarem aborrecidas, que se entretenham a estimar a frequência, amplitude e duração da irrequietude dos seus companheiros de infortúnio. (…) Penso que desta forma poderão adquirir uma nova arte de conferir expressão numérica à quantidade de tédio geralmente expressa pelo público durante qualquer apresentação de trabalhos.”

100 anos para medir o tédio
Foi preciso esperar um século depois da publicação do ensaio de Galton para que os psicólogos (e não os filósofos) começassem a tentar medir o tédio para o estudar. Em 1986, Norman Sundberg e Richard Farmer, da Universidade do Oregon (EUA), desenvolveram para isso a chamada Escala de Propensão ao Tédio (EPT, em inglês Boredom Proneness Scale), que permitia avaliar o quão aborrecida estava uma pessoa através de uma série de perguntas “que iam para além do simples ‘sente-se entediado(a)’?”, lê-se num artigo da jornalista norte-americana Maggie Koerth-Baker publicado há dias na revista Nature

O teste, disponível a qualquer um, por exemplo em http://www.gotoquiz.com/boredom_proness_scale, consiste em 28 afirmações com as quais podemos concordar ou discordar, do tipo: “O tempo parece passar sempre muito devagar.”

Já agora, a acreditar nos resultados obtidos ao fazer o teste, a autora deste artigo revelou-se muito pouco propensa ao tédio – talvez graças à sua estimulante profissão de jornalista de ciência, visto que uma grande fatia das situações entediantes da nossa vida está relacionada (é triste dizê-lo) com o nosso trabalho.

“Tédio? O que é isso? Você poderia estar a ver secar uma parede recém-pintada e adorar”, foi a resposta que recebemos. “O seu romance preferido é Guerra e Paz (plausível) e os seus projectos são de muito longo prazo.” Um resultado que consideramos contudo algo optimista, a julgar pela nossa reacção aos filmes de Jean-Luc Godard ou de Manoel de Oliveira…

Vários tipos de tédio?
Mas o que é exactamente o tédio? Ninguém sabe ao certo, mas tudo indica que não se trata simplesmente de um estado de depressão ou de apatia, uma vez que, para além da já referida autopunição a que as pessoas recorrem para evitar tão desagradável estado mental, é notório que o tédio também pode conduzir a comportamentos activos de risco, como o abuso de drogas ou o jogo compulsivo – e ainda, noutro contexto, ao insucesso escolar.

Uma coisa parece certa: o tédio é uma emoção suficientemente importante na vida das pessoas para o seu estudo ser levado a sério do ponto de vista científico. E mais: conhecem-se casos de lesões cerebrais, na sequência de traumatismos, em que os doentes não só ficam com uma maior propensão para o tédio do que antes, mas ficam entediados mesmo com as actividades que até aí eram a paixão da sua vida. Como faz notar aliás Maggie Koerth-Baker no artigo referido, esse foi um dos motivos pelos quais alguns neurocientistas começaram a interessar-se pelo tema nos últimos anos, procurando em particular as raízes neurológicas do tédio.

Outra coisa parece confirmar-se: existem vários tipos de tédio. Por exemplo, segundo resultados da equipa de Thomas Goetz, da Universidade de Constança (Alemanha), publicados em 2013 na revista Motivation and Emotion, existem cinco tipos de tédio, em função do estado emocional das pessoas por um lado (que vai de preguiçoso a irrequieto a irritável) e, por outro, das emoções positivas e negativas que sentem quanto estão entediadas. Este tipo de classificações, bem como as técnicas utilizadas para medir o tédio (e para induzir o tédio nas pessoas de forma a poder realizar experiências) não param contudo de evoluir.

Tédio bom, tédio mau
Mas simplifiquemos. Em termos gerais, existe um tédio “simples”, que é o tédio que todos já sentimos em diversas situações do nosso dia-a-dia devido a circunstâncias transitórias e muitas vezes previsíveis. Mas há também o chamado tédio “existencial”, que se caracteriza por “um sentimento ininterrupto de isolamento, vazio, alienação e até impotência”, explicava Peter Toohey, professor de Estudos Clássicos na Universidade de Calgary (Canadá), numa entrevista em 2011 à revista New Yorker a propósito do livro que acabara de publicar.

O seu livro intitula-se Boredom: A Lively History (Tédio: Uma História Vivaz) e a tese de Toohey é que o tédio é uma emoção universal que os humanos de todas as culturas e de todas as épocas conhecem bem.

O tédio existencial, escreve, “é um conceito construído a partir de uma mistura de tédio, tédio crónico, depressão, sentido do supérfluo, frustração, excesso, nojo, indiferença, apatia e a sensação de aprisionamento”. Segundo Toohey, lê-se numa recensão do mesmo livro publicada no diário britânico The Guardian, este tipo de tédio extremo foi inventado no século XVIII, aquando da ascensão do individualismo e da crescente secularização da sociedade.

Quanto ao tédio simples, argumenta ainda Toohey, trata-se de uma emoção positiva, que nos permite “sonhar, imaginar e proteger de situações chatas ou desagradáveis”. E nesse sentido, Toohey retoma e generaliza as ideias e o trabalho sobre as emoções que celebrizaram o neurocientista português António Damásio, radicado nos EUA desde 1975 e hoje director do Instituto do Cérebro e da Criatividade na Universidade da Califórnia do Sul (EUA).

“O tédio deriva as suas características da emoção primária [de nojo e] António Damásio explica que o nojo é ‘uma emoção primária que evoluiu em associação com a rejeição automática e benéfica de alimentos tóxicos’”, escreve Toohey no seu livro. Para daí concluir que, da mesma forma, “a emoção adaptativa de tédio evoluiu portanto para facilitar as relações, ao encorajar a rejeição benéfica de situações sociais tóxicas.”

Ironiza o Guardian, com aquele toque de humor anti-francês de que padecem muitos britânicos: “O tédio simples, tal como Toohey o define, parece ser o tipo de tédio que sofremos quando temos duas aulas seguidas de francês, enquanto o tédio existencial é o tipo de tédio que sentimos quando vemos um filme francês” (outra vez Jean-Luc Godard?).

Seja como for, para Toohey o tédio simples é uma coisa boa, porque não só nos obriga a escapar a situações que já se esgotaram e se tornaram becos sem saída, como também nos leva, para o evitar, a procurar e abrir novos trilhos de pensamento. O que significa que o tédio pode estar na raiz da criatividade humana e ser, afinal, a causa de todo o progresso.

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