Sónia Melo ilibada de fraude mas foi negligente e pouco rigorosa

Conclusões da comissão externa independente que analisou o caso de investigadora do Porto foram anunciadas esta sexta-feira. Mas o relatório da comissão não foi tornado público.

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Sónia Melo, de 36 anos, foi para o Porto 2014 para fazer investigação sobre cancro Adriano Miranda

O caso de Sónia Melo – actualmente cientista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S), no Porto – ganhou projecção pública entre o final de 2015 e o início deste ano. Teve de retirar de publicação um artigo científico, viu ser-lhe retirada uma bolsa de 50 mil euros por uma instituição europeia prestigiada e acabou por suspender as suas funções como investigadora principal no I3S – e a razão de tudo isto era a suspeita de manipulação de imagens em alguns dos seus trabalhos científicos. O I3S nomeou (em Março) uma comissão externa independente para analisar o caso e esta sexta-feira divulgou as conclusões: Sónia Melo foi “ilibada de atitude fraudulenta”, mas “os erros identificados colidem com a necessidade de rigor científico e revelam negligência”, diz o I3S em comunicado.

“Ficou claro que nenhum erro afectou o conteúdo científico e que não houve fraude em situação nenhuma. Houve negligência, eu assumo, mas há que deixar claro que o conteúdo científico não foi colocado em causa”, disse Sónia Melo esta sexta-feira ao PÚBLICO. “Nenhuma da ciência que foi produzida está errada, nenhuma ciência produzida foi manipulada”, frisou a cientista que, na segunda-feira, vai retomar as suas funções anteriores. “Todo este processo foi muito difícil para mim. Foi complicado ver o meu trabalho colocado em causa.”

As dúvidas incidiram em trabalhos de Sónia Melo antes da sua ida para o I3S. Surgiram em Setembro de 2015 no PubPeer (um site em cientistas fazem a revisão de trabalhos de outros cientistas após a sua publicação): divulgaram-se então indícios de que a cientista teria repetido imagens relativas a uma mutação genética de um cancro, num artigo de 2009 na revista Nature Genetics. Era o seu primeiro artigo, e publicava-o como estudante de doutoramento do Instituto de Investigação Biomédica de Bellvitge, em Barcelona.

Nos dias seguintes à divulgação pelo PubPeer, o site sugeria que noutros artigos o processo seria semelhante: as imagens seriam repetidas, invertidas e rodadas, o que reforçaria os resultados. Daqui o caso espalhou-se a outros sites dedicados a revisão de artigos científicos, como o Retraction Watch.

Em Janeiro deste ano, Sónia Melo retirava de publicação o artigo de 2009 na Nature Genetics, assumindo na “notícia de retracção” a duplicação de imagens.

Esta bola de neve cresceu ainda mais quando, no final de Fevereiro, a Organização Europeia de Biologia Molecular (EMBO) lhe retirou uma bolsa (atribuída em Dezembro) de 50 mil euros. Por essa altura, na sequência da decisão da EMBO, a cientista suspendeu as suas funções no I3S e o instituto nomeou a comissão externa.

Depois do doutoramento, e de um pós-doutoramento nos EUA, Sónia Melo voltou em 2014 ao Porto, onde estava no I3S a investigar os exossomas (vesículas minúsculas que se encontram no sangue e que poderão vir a ser usadas na detecção precoce de cancros e na melhoria da eficácia dos tratamentos).

Por que é que o parecer não é público?

Composta por quatro investigadores – cujos nomes foram agora revelados: Catarina Oliveira e Arsélio Pato de Carvalho, ambos da Universidade de Coimbra; Fernando Lopes da Silva, da Universidade de Amesterdão; e Carmo Fonseca, do Instituto de Medicina Molecular de Lisboa –, a comissão averiguou três publicações. O já referido artigo de 2009 na Nature Genetics, bem como um artigo em 2011 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e, por fim, um artigo de 2015 na Nature.

Se o trabalho de 2009 já tinha sido retirado de publicação, no de 2015 foi publicada uma correcção e no de 2011 está em curso a correcção de um erro, diz o comunicado. E acrescenta que a investigadora, na qualidade de primeira autora destes trabalhos, “assumiu a sua quota-parte de responsabilidade” nos erros existentes. “Os erros identificados estão associados ao processo de edição e revisão de imagens incluídas nos referidos artigos, não pondo em causa o conteúdo dos artigos publicados”, diz o comunicado, que acrescenta que a comissão externa considerou que os erros detectados nos três artigos “não resultavam de uma atitude fraudulenta ou que tenha havido tentativa de fuga à verdade”.

Ao PÚBLICO, Sónia Melo repete: “Deveria ter visto que as imagens não estavam bem [no artigo de 2009]. Mas não vi, por isso o relatório refere-se a negligência. Não há fraude, há negligência, que é óbvia”, acrescentando: “O EMBO baseou-se em ter havido negligência [para retirar a bolsa], nunca mostrou que eu tenha manipulado alguma coisa.”

Mário Barbosa, director do I3S, considera que “a fraude seria uma falha grave, mais grave do que a negligência”: “A negligência não teve a ver com a manipulação de dados, mas com o tratamento pouco adequado da informação incluída nos artigos. Face à inexistência de fraude, entendemos que a razão principal que tinha levado à suspensão de funções deixou de existir.”

No entanto, o parecer da comissão externa – que teve acesso a “centenas de documentos disponibilizados por nós”, incluindo dados originais, diz Mário Barbosa – não foi tornado público. “Não o damos porque as conclusões do relatório estão vertidas no nosso comunicado. Transcrevemos para o comunicado os aspectos principais do relatório”, justifica Mário Barbosa. “O relatório é um documento de apoio à decisão da comissão directiva do I3S. Quem dá a cara pela decisão é a comissão directiva do I3S.”

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