Relatório que liga morte em ensaio a molécula “não é conclusivo”, diz Bial

Comité que analisou o caso da morte num ensaio clínico, em França, concluiu que o acidente que afectou vários voluntários e provocou uma morte “aparece claramente ligado à molécula”.

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A empresa farmacêutica portuguesa desenvolveu dois fármacos de raiz Nelson Garrido

O relatório do comité científico criado pela Agência Nacional de Segurança do Medicamento e dos Produtos de Saúde francesa (ANSM) que tinha como missão analisar o composto BIA 10-2474 e tentar encontrar explicações para os problemas graves no ensaio clínico de fase I realizado na Biotrial, em Rennes, foi divulgado esta terça-feira. Os peritos consideram que a hipótese mais provável é de “uma toxicidade própria da molécula”. A Bial reclama que ainda não conseguiu acesso à informação clínica sobre os voluntários e conclui que este relatório “não é conclusivo quanto à causa concreta do acidente nem da morte de um dos voluntários que participaram no ensaio clínico”.

Em comunicado divulgado ao final da manhã desta quarta-feira, a empresa farmacêutica portuguesa sublinha que “o relatório final do comité cientifico, que reuniu um conjunto independente de farmacologistas, toxicologistas e clínicos, sublinha, à semelhança do que já fez anteriormente, o carácter imprevisível do incidente, levantando algumas hipóteses de explicação para o sucedido”. No entanto, apesar de claramente mencionar que o problema está relacionado com os efeitos da molécula testada, os peritos não apontam para um explicação única e definitiva sobre o que aconteceu no centro de ensaios clínicos em França. Falta informação para uma conclusão definitiva, reclama a Bial que considera que as hipóteses levantadas no relatório “terão de ser analisadas de forma global conjuntamente com a informação clínica dos voluntários que falta ainda conhecer”. E lamenta: “A Bial salienta que não teve ainda acesso à totalidade dos dados médicos dos voluntários, elemento essencial para a prossecução de uma investigação completa em torno do sucedido.”

Desta forma, a empresa, que adianta que outras investigações estão a ser conduzidas pelo IGAS (Inspecção-geral das Actividade de Saúde de França), bem como pelo Ministério Público francês, defende que o puzzle está incompleto. “O comité científico classificou o incidente ocorrido como muito pouco habitual, sem precedentes, ressalvando que nos testes realizados em quatro espécies de animais, com doses muito superiores às administradas no ensaio de fase I, não foram detectados quaisquer sinais prévios que pudessem antever o sucedido”, sublinha a bial. O comunicado acrescenta ainda que, sobre os ensaios pré-clínicos, estes foram considerados como cumprindo com a regulamentação existente. “Neste relatório é ressalvado que nenhuma toxicidade comparável com a ocorrida no acidente de Rennes aconteceu em animais. De igual forma, nenhum sinal de alerta foi identificado junto dos demais voluntários que participaram nas fases precedentes de ensaio (num total de 116 voluntários dos quais 90 receberam o medicamento experimental e 26 receberam placebo)”, lê-se ainda no comunicado, que insiste que o “apuramento de forma rigorosa e exaustiva do que se passou no ensaio clínico com o composto experimental BIA 10-2474 constitui uma prioridade para Bial” .

Em Janeiro, seis voluntários de um ensaio clínico de fase I da molécula BIA 10-2474, para fins sobretudo analgésicos, foram hospitalizados em Rennes. Quatro dos cinco sobreviventes ficaram com lesões cerebrais graves. O comité científico com 12 peritos analisou o conjunto de dados existentes sobre a classe de substâncias a que pertence a molécula BIA 10-2474 – os chamados “inibidores da FAAH”, que é uma enzima –, bem como dados sobre a própria molécula da Bial, dados pré-clínicos e clínicos do ensaio e ainda informações adicionais pedidas à empresa portuguesa.

 “A hipótese que nesta altura é mais provável é a de uma toxicidade própria da molécula via a sua fixação sobre outras estruturas cerebrais.” E que essa fixação foi facilitada pela sua “fraca especificidade pela sua enzima-alvo” (a FAAH); pela “utilização de doses repetidas bem superiores às que conduzem (pelo menos no homem) a uma inibição completa e prolongada da FAAH”; e a “sua provável acumulação progressiva, ao nível cerebral, sem dúvida ligada às particularidades farmacológicas da BIA 10-2474”, o que poderá “explicar por que o acidente de Rennes só ocorreu a partir do quinto dia de administração de uma dose de 50 mg e não nos voluntários que tinham recebido uma dose duas vezes mais forte numa única administração”.

No relatório de 30 páginas, diz-se ainda que, embora os dados transmitidos não fizessem crer que havia um risco particular a nível toxicológico da primeira administração da molécula ao homem, a Brochura do Investigador (compilação de dados clínicos e não clínicos sobre um produto em investigação) tinha um “grande número de erros, imprecisões, inversão de números ou traduções erradas das fontes documentais que tornavam difícil a compreensão de vários pontos”, o que é “surpreendente, dada a importância regulamentar deste documento”. Sobre os “lapsos apontados pelo Comité Científico à brochura do investigador”, a Bial considera que “não são susceptíveis de explicar os acontecimentos de Rennes”.

No final da semana passada, o jornal Le Figaro já tinha revelado algumas conclusões de um relatório do inquérito interno da ANSM que concluía que o "avaliador não clínico do ensaio" já tinha alertado para eventuais efeitos secundários neurológicos, tendo em conta as lesões observadas durante a fase de testes em animais.

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