Quando a ciência passa a pseudociência

A ciência também é feita de incertezas e há quem as aproveite para passar ideias erradas e sem fundamentação científica. Assim nascem movimentos pseudocientíficos como o das antivacinas e o da rejeição das estatinas.

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Ilustração de um unicórnio no livro The history of four-footed beasts and serpents Edward Topsel

Há informação que se disfarça de ciência e essa máscara pseudocientífica é difícil de detectar. São muitos os casos conhecidos, desde a negação das alterações climáticas provocadas por nós, passando pelo movimento antivacinas até à rejeição do uso das estatinas, um grupo de fármacos que controla os níveis de colesterol. A negação das estatinas está a chegar agora a Portugal. “Era algo que existia, mas não de forma organizada”, frisa João Cerqueira, médico e autor do blogue Scimed, que promove a literacia em saúde. Como nasceu esta polémica?

Num editorial na revista Annals of Internal Medicine de Julho deste ano, o médico norte-americano Steven Nissen (da Clínica de Cleveland no Ohio) considera que o início do “movimento” da negação das estatinas surgiu com a aprovação da Lei de Saúde e Educação dos Suplementos Dietéticos nos EUA em 1994. “Quase duas décadas depois da aprovação da lei, o conjunto de suplementos dietéticos sem qualquer valor ou perigosos no mercado é espantoso, representando mais de 30.000 milhões de dólares [26.000 milhões de euros] de vendas anuais”, aponta o médico. “Geralmente, os fabricantes destes produtos insinuam benefícios que nunca foram confirmados em estudos clínicos formais.”

Essa negação aproveita as dúvidas do processo científico. “Antes de haver certezas, há dúvidas. Mas o processo da ciência é esse: perante as dúvidas, passo a passo, encontram-se respostas”, explica João Lourenço Monteiro, co-fundador da Comunidade Céptica Portuguesa. Há dois tipos de controvérsia, muito diferentes. Uma é o debate médico, em que há consenso sobre o efeito das estatinas, e o que se discute são as incertezas normais da ciência, como a idade em que se deve começar a medicação. A outra parte é uma “falsa polémica”, como a designa João Monteiro, alimentada pelas terapias alternativas. “Muitos adeptos de terapias alternativas aproveitam o campo das dúvidas para lançar certezas, que são muitas vezes erradas.”

Ao contrário do movimento antivacinas (que este ano teve visibilidade em Portugal na sequência de vários casos de sarampo), a rejeição das estatinas como terapia para baixar o colesterol é defendida por pessoas isoladas, entre as quais se destacam, nos EUA, Joseph Mercola e David Wolfe. “Aproveitam o campo da dúvida para fazer certas afirmações e vender os seus produtos”, explica João Monteiro. Em Portugal, o rosto visível da falsa polémica é o médico Manuel Pinto Coelho, que tem uma clínica antienvelhecimento em Lisboa.

Os defensores da falsa polémica partilham os mesmos argumentos. Um deles é o “mito do colesterol”, ou seja, que esta gordura não provoca doenças cardiovasculares. Depois, dizem que as estatinas não servem para nada e até são prejudiciais. No caso português, João Cerqueira menciona até a “falácia da autoridade”: “O doutor Pinto Coelho promove-se como doutorado, professor e médico. As pessoas reconhecem-lhe validade devido a isso. Mas é preciso ver se o que diz está de acordo com a evidência científica. Pegou em várias controvérsias, juntou-as e usa-as como autopromoção.”  Já João Monteiro destaca o jargão científico usado pelo médico português: “Vem com conceitos médicos e científicos para tentar dar credibilidade aos seus argumentos.”

Toda esta pseudo-informação tem sido propagada pela Internet. No editorial mencionado, Steven Nissen destaca o papel da Internet como “motor deste culto com consequências letais”. “Numa pesquisa na Internet da expressão ‘suplementos dietéticos para baixar o colesterol’ surgem 889.000 resultados a defender produtos como cápsulas de alho, policosanol, óleo de lavanda, cápsulas de chá verde, extractos de folhas de alcachofra, e muitos outros”, lê-se. “Estamos a perder os nossos pacientes, tanto pela razão como pelo coração, para sites criados por pessoas com poucos ou nenhuns conhecimentos científicos”, disse ainda Steven Nissen. 

“O problema é o da literacia das pessoas, que vão à Internet e não conseguem diferenciar a informação credível de pseudociência”, diz João Cerqueira. Então, para nos protegermos é preciso começar por verificar se há referência a estudos científicos. Depois, é preciso saber que tipos de estudos são esses. “Usam-se estudos laboratoriais, estudos feitos em animais e com baixas amostragens para validarem teorias que já foram descredibilizadas em estudos clínicos [em pessoas]”, frisa.

Para fugir aos perigos da pseudociência, João Cerqueira defende que as instituições de saúde, como a Direcção Geral da Saúde, deveriam promover ainda mais a educação para saúde na comunicação social; a literacia em saúde nas escolas; e que a legislação portuguesa que dá validade legal às terapias alternativas deveria ser revogada até que se demonstrasse a eficácia científica de alguma dessas técnicas. 

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