Produtos nada científicos, ou a arte de parecer ciência com truques de circo

Autores do livro são da Comunidade Céptica Portuguesa, que promove o uso do pensamento crítico apoiado na ciência. Nele desmascara-se a pseudociência, como terapias alternativas, o movimento antivacinas e o engraçadismo da ciência nos jornais. No sábado é apresentado na Feira do Livro de Lisboa.

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Os autores do livro inventaram esta Bandolete Quântica para mostrar quão fácil é fazer a sua própria pseudociência DR

A ciência inspira credibilidade. Nenhuma outra forma de pensar foi até hoje tão bem-sucedida em esclarecer os mistérios do Universo. Todos o reconhecem em certo grau, até mesmo aqueles que, por diversos motivos, se recusam a aceitar algumas conclusões científicas. Por isso, não é de surpreender que quem tenta vender produtos e serviços de eficácia duvidosa procure, pelo menos, simular uma aparência científica. Como é que é suposto isto funcionar? “É ciência, estúpido! É óbvio que funciona!”

Numa visita à página da Internet do Museu da Charlatanice é possível observar uma variedade de dispositivos médicos inúteis cujos inventores tentaram justificar com as descobertas científicas mais marcantes da sua época, alegando que os seus tratamentos funcionavam através do magnetismo, da electricidade, das ondas de rádio, dos raios X e da radioactividade. Curiosamente, o magnetismo continua a ser uma explicação popular para vários produtos como cintas, palmilhas e até capas para bancos de automóveis com ímanes embutidos. Parece que o fascínio que todos sentimos em crianças pela força invisível dos ímanes tornou o magnetismo numa explicação intemporal para produtos milagrosos.

Actualmente, temas como a nanotecnologia, a neurociência, as células estaminais e a genética, sobre os quais o público lê e ouve descobertas quase diárias, começam também a ser introduzidos na maquilhagem de produtos e serviços dúbios. Mas é a física quântica que permanece a campeã incontestável dos conceitos científicos mais abusados. A forma contra-intuitiva como o mundo subatómico funciona, avaliada, é claro, pelos padrões da experiência humana, parece sugerir que tudo é possível, inclusive que o Slimatic DX300 Pro é capaz de teletransportar aquela gordurinha extra até à quinta dimensão. É como se a física quântica despertasse em nós a fantasia de que a magia é real e a imaginação o único limite. O que se segue é apenas uma pequena amostra:

• As secções de auto-ajuda e espiritualidade de qualquer grande livraria contêm livros que garantem explicar e resolver uma série de problemas pessoais com recurso à física quântica. E não estamos a falar de problemas como a dualidade dieta-­bolo de chocolate ou a conta bancária de Schrödinger;

• Os praticantes da medicina quântica, também designada “energética”, “informacional” ou biofeedback, prometem ser capazes de diagnosticar e tratar doenças com o auxílio de uma máquina que se liga ao corpo por eléctrodos e que produz gráficos e animações de aspecto muito científico num ecrã de computador;

• Pela quantia certa, e sem sair de casa, é possível obter um diploma da Universidade Quântica, a “maior instituição mundial de ensino superior em medicina holística, alternativa, natural, integrativa e da ciência da física quântica”. Para citar a sabedoria antiga da Rua Sésamo: “Uma destas coisas não é igual às outras”; 

• Numa farmácia homeopática da Internet pode adquirir-se a linha completa dos “Florais Quânticos” cujas “essências vibracionais e os extractos florais ressoam em frequência actuando como coadjuvantes [e] promovendo o equilíbrio energético de carácter emocional”. Percebeu? Não? É mesmo esse o objectivo!

O esplendor da tecnoverborreia

Pode não ser para perceber, mas a descrição do princípio de funcionamento dos “Florais Quânticos” leva-­nos ao próximo utensílio do estojo de maquilhagem científica. Não basta referir uma qualquer descoberta ou disciplina científica, a descrição do princípio de funcionamento tem de soar erudita e complexa. Tem de convencer as pessoas de que se trata de um discurso científico genuíno e também de as inibir de fazer perguntas incómodas por medo de parecerem pouco inteligentes. É aqui que entra a “tecnoverborreia”, que, como o próprio nome indica, resulta de uma mixórdia de jargão técnico, inventado ou emprestado de disciplinas científicas reais e tem a característica de soar impressionante, apesar de ser completamente vazia de significado. Da mesma forma que os argumentistas de Star Trek utilizam a tecnoverborreia para tapar buracos no enredo e criar explicações para tecnologias que não existem, os “empreendedores do alheio” utilizam-­na para ocultar o facto de que estão a vender uma mão cheia de nada.

As pulseiras de silicone com hologramas, que em Portugal ficaram conhecidas por “pulseiras do equilíbrio”, são um exemplo perfeito para entender como funciona, na prática, o estojo de maquilhagem científica. Os inventores desse extraordinário produto da “tecnologia holística”– expressão utilizada pelos próprios – eram não só criativos na utilização da tecnoverborreia, como também chegaram ao ponto de tentar imitar uma das características mais reconhecidas da ciência: a experimentação.

Vejamos como a Power Balance, de longe a marca mais popular, introduzia as suas pulseiras, que, entre outras coisas, eram alegadamente capazes de melhorar o equilíbrio, a força e a flexibilidade dos utilizadores: “A pulseira Power Balance contém embutidos dois hologramas quânticos de Mylar programados com frequências que interagem naturalmente com o campo electromagnético do corpo humano (…) A tecnologia única e patenteada da Power Balance liga­-se ao teu campo energético, criando um circuito que o optimiza e aumenta a distribuição de energia ao máximo, instantaneamente! (…) A Power Balance foi criada por um grupo de atletas com profundos conhecimentos na área da saúde. Após anos de investigação e desenvolvimento, a Power Balance redefiniu a tecnologia holística!”

Uma frequência é simplesmente o número de ocorrências de algo por unidade de tempo (por exemplo, os batimentos cardíacos). Mas que “campos energéticos” serão esses? E, mais importante ainda, será que dão para carregar a bateria do telemóvel? Talvez a explicação de como funcionam os “hologramas quânticos de Mylar” possa fornecer algumas respostas, mas com tantos anos de investigação e desenvolvimento parece que sobrou pouco tempo para escrever uma explicação clara: “O Disco Holográfico de Mylar Power Balance (a mesma substância usada para evitar que a electricidade estática danifique os componentes eléctricos) foi programado com uma frequência que restaura o equilíbrio eléctrico do corpo, melhorando a livre troca de iões positivos e negativos, e alinha as vias de energia do seu corpo. O disco de alta densidade actua como um interruptor, ressoando dentro do seu sistema e activando o seu campo de energia ao mesmo tempo que abre as vias para que a troca electroquímica funcione como o gerador que foi projectado para ser. Quando o Holograma Power Balance entra em contacto com o campo de energia do corpo, começa a ressoar de acordo com cada indivíduo biológico, criando um laço harmónico que optimiza o seu campo de energia e mantém o fluxo máximo de energia.”

É a tecnoverborreia em todo o seu esplendor. Expressões como “frequência”, “campo de energia”, “iões positivos e negativos” e “troca electroquímica” são utilizadas para dar um aspecto científico a uma explicação que não faz qualquer sentido. Mas não deixa de ser impressionante o quão coerente pode soar um texto que não diz absolutamente nada. E, de facto, esta salada russa de termos técnicos foi suficiente para convencer muita gente das credenciais científicas da pulseira. Curiosamente, a marca tentava apelar não só ao segmento de mercado interessado em produtos inovadores e tecnológicos, como também aos que preferem explicações místicas e alternativas, nomeadamente através de referências ao vitalismo, à filosofia oriental, ao “reiki” e à acupunctura. Quando a “pulseiromania” atingiu o pico de popularidade, no Verão de 2010, já os portugueses tinham adquirido 20 mil pulseiras Power Balance a 38 euros a unidade. Um feito notável, tendo em conta que os hologramas eram tão banais como os que se podem encontrar em cartões de crédito e autocolantes. E estas contas não incluem as marcas concorrentes e as pulseiras contrafeitas, que motivaram a empresa a criar um guia na Internet sobre como distinguir as pulseiras genuínas das imitações – desta forma, os consumidores podiam pelo menos saber se tinham adquirido a fraude correcta.

Uma “pulseira nanotrónica”, um “colar epigenético”?

Algumas pessoas diziam utilizar as pulseiras apenas por uma questão de moda. Mas, de cidadãos comuns a figuras públicas, não faltavam testemunhos pessoais sobre as maravilhas das pulseiras que, em alguns casos, iam muito para além das alegações dos fabricantes: por exemplo, eliminando a dor dos utilizadores ou funcionando até em animais de estimação. Entre os principais alvos do marketing da empresa estavam os atletas e desportistas que, ambiciosos e supersticiosos por natureza, estão sempre dispostos a tentar tudo o que prometa uma vantagem adicional e, nos dias que correm, já não chega ter um par de meias da sorte: de fitas adesivas coloridas (fita kinésio) à ventosaterapia, os Jogos Olímpicos tornaram­-se numa autêntica montra publicitária de produtos e tratamentos dúbios. O poder da sugestão e outros fenómenos cognitivos terão, sem dúvida, estado envolvidos em muitas dessas manifestações de satisfação, mas igualmente importantes terão sido os testes musculares que os revendedores eram instruídos a fazer aos potenciais clientes.

Se o objectivo da tecnoverborreia era o de simular a linguagem da ciência, os testes executados pelos revendedores tinham por função imitar a máxima científica de colocar as ideias à prova. Geralmente, o utilizador fazia um teste muscular sem a pulseira, voltando depois a repeti-lo com a mesma, momento em que o seu equilíbrio, força e flexibilidade sofriam quase sempre uma melhoria notável. Estes testes pareciam comprovar o poder das pulseiras. Mas será que testavam realmente alguma coisa? Nem de perto.

Para merecerem sequer a designação de “teste” teriam de pelo menos permitir a hipótese de a pulseira não funcionar. Contudo, da forma como eram executados, o resultado positivo era quase garantido. Estes testes tinham todos os ingredientes para enganar tanto os utilizadores como os executantes do teste, por isso não é de todo impossível que muitos dos revendedores acreditassem genuinamente na eficácia das pulseiras. Toda a gente gosta de ver as suas ideias e crenças confirmadas. E todos os vendedores gostam de vender os seus produtos – afinal, é esse o seu trabalho. Os executantes dos testes sabiam quando o utilizador estava a usar a pulseira e sabiam também que resultado esperar. Consciente ou inconscientemente, é muito fácil alterar a força e os ângulos de aplicação dessa força de forma a obter o resultado que se pretende. Adicionalmente, os utilizadores podem também alterar o seu comportamento de acordo com as expectativas que têm sobre a pulseira. Um dado curioso é que estes testes eram idênticos aos utilizados pela “cinesiologia aplicada”, uma terapia alternativa inventada por um quiroprático: os praticantes “perguntam” ao corpo se está doente e se precisa de algo para se curar – isto é feito de forma literal (isto é, oralmente), aproximando frascos de várias substâncias ou aplicando pressão em certos pontos do corpo – os órgãos do corpo, supostamente, respondem por intermédio de testes musculares em tudo semelhantes aos das pulseiras, até mesmo na sua propensão para o auto-engano.

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Mas qual é então a forma correcta de testar as pulseiras? Existem várias possibilidades. Podemos até utilizar os testes promovidos pelos fabricantes – afinal, eles alegavam que os testes eram capazes de medir o equilíbrio, a força e a flexibilidade e, desta forma, não há desculpa para não se aceitar resultados decepcionantes. Mas a experiência tem obrigatoriamente de incluir algumas alterações para que a possibilidade de fraude e auto-engano seja reduzida:

• A experiência pode ter apenas um examinador, mas deve incluir um grupo de vários utilizadores escolhidos de forma aleatória. E quantas mais pessoas forem testadas, menor será a possibilidade de os resultados se deverem a uma mera coincidência, sejam eles positivos ou negativos;

• Deve existir uma pulseira verdadeira e uma pulseira “placebo”, isto é, uma pulseira falsa mas que seja indistinguível da genuína. Para isso basta utilizar uma caixa para ocultar as pulseiras e essa caixa pode ser segurada na mão ou guardada no bolso (os fabricantes alegavam que bastava ter o holograma a alguns centímetros do corpo para que este surtisse efeito);

• A experiência deve usar o método de dupla ocultação, ou seja, nem os utilizadores nem o examinador devem saber qual é a pulseira verdadeira e qual é a pulseira placebo antes do final da experiência. Desta forma, evita­-se a fraude e o auto-engano, tanto da parte dos utilizadores como do examinador;

• Cada utilizador deve usar as pulseiras de forma alternada e o examinador tem de determinar qual é a pulseira verdadeira apenas com os testes musculares. Algo que deve ser possível se os testes e a pulseira funcionarem de verdade;

• O examinador tem de identificar correctamente a pulseira com um resultado bastante melhor do que o esperado por palpites ao acaso. Por exemplo, se a experiência tiver um grupo de 20 sujeitos, então é esperado que o examinador acerte aproximadamente em dez apenas por acaso (existe uma probabilidade de 50% de o utilizador ter a pulseira verdadeira e de 50% de ter a pulseira placebo, por isso, tal como acontece quando se tenta adivinhar se sai cara ou coroa no lançamento de uma moeda, é esperado que se acerte cerca de metade das vezes por puro acaso; ou, colocado de outra forma, os nossos 20 sujeitos equivalem a 20 lançamentos de uma moeda).

Alguns detalhes do protocolo podem variar – por exemplo, os participantes podem ser previamente divididos entre os que possuem uma pulseira verdadeira e uma pulseira placebo. Podem até ser utilizados outros testes físicos. O que é realmente importante é que a experiência não se fique apenas por uma pessoa, seja de dupla ocultação e faça uso de uma pulseira placebo como controlo. E, de facto, quando as pulseiras do equilíbrio são testadas com estas precauções em mente, por investigadores independentes e organizações cépticas, deixam invariavelmente de funcionar. Um pouco por todo o mundo, autoridades e associações de protecção do consumidor decidiram tomar medidas e começaram a surgir processos contra várias marcas de pulseiras com hologramas. A Power Balance teve de pagar milhões de dólares em reembolsos, multas e custas processuais, chegando mesmo a ser obrigada pelo regulador australiano a admitir publicamente que não havia “nenhuma evidência científica credível” que suportasse as suas alegações e que havia agido com uma “conduta enganosa”. Por incrível que pareça, isto não foi o fim da marca norte­americana que, após um pedido de falência, acabou por ser comprada pelo fabricante chinês que produzia as pulseiras. Continua a existir uma loja Power Balance na Internet, mas agora com uma importante diferença: não existe qualquer alegação explícita sobre efeitos no corpo humano e a única explicação que dão para o funcionamento da tecnologia é que se baseia em “filosofias orientais”. Claramente, uma solução quântico­-jurídica para evitar novos problemas com a justiça.

A moda das bijuterias que se fazem passar por produtos científicos tende a ser um fenómeno cíclico que regressa quando o embuste anterior já foi esquecido. Antes das pulseiras do equilíbrio existiram as pulseiras Tucson, com duas bolinhas de metal nas extremidades, e que foram um enorme sucesso nos anos 80, em grande parte devido a uma campanha de publicidade com António Sala. A questão que se coloca é: qual será a bijuteria responsável pela próxima grande revolução da saúde e bem-estar? Talvez a “pulseira nanotrónica” que consegue modular os electrões do campo semi­condutor natural do corpo humano; ou talvez o “colar epigenético” que altera a expressão genética através de uma frequência metilante de microarrays. Basta dar asas à imaginação.

 

Título: Não se Deixe Enganar – Guia de Sobrevivência no Mundo Moderno

Autores: Diana Barbosa, João Lourenço Monteiro, Leonor Abrantes e Marco Filipe

Prefácio: Carlos Fiolhais e David Marçal

Editora: Contraponto

239 páginas; 16,60€

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