Um coração artificial em Portugal? Ainda não, mas houve um avanço importante

A notícia começou por ser o primeiro implante de um coração artificial no país. Mas o que se fez em Lisboa foi o implante de um aparelho que ajuda a bater o coração do lado esquerdo de um homem de 65 anos.

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O médico José Fragata, que dirigiu a cirurgia Daniel Rocha

Logo pela manhã desta terça-feira, foi anunciado com pompa e circunstância que no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, tinha sido realizado, no dia anterior, o primeiro implante de um coração artificial em Portugal. A notícia foi avançada por vários órgãos de comunicação social (incluindo o PÚBLICO), e o ministro da Saúde, Adalberto Campos Ferreira, chegou a considerar a cirurgia um “facto inédito”. Mas a história não estava bem contada. Sim, foi a primeira vez que esta cirurgia se fez em Portugal, mas não o implante de um coração artificial. O que se pôs dentro do peito de um doente de 65 anos foi um aparelho que ajuda o seu coração a bater do lado esquerdo.

Também logo pela manhã, o ministro da Saúde anunciou, na 6.ª Conferência Sustentabilidade na Saúde 4.0 — Investimento em Saúde e Impacto na Vida Laboral, em Lisboa, que tinha sido feito o primeiro implante de um coração artificial num doente em Portugal, no Hospital de Santa Marta, como noticiou a agência Lusa. O ministro considerou esta cirurgia como um “facto inédito” e afirmou que, ainda durante a manhã, seriam dadas mais informações numa conferência de imprensa com a equipa médica do hospital.

Chegada a conferência de imprensa no Hospital de Santa Marta, a tónica voltou a ser o coração artificial. “Foi implantado pela primeira vez em Portugal, ontem, um coração artificial”, começou por dizer Ana Escoval, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

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O dispositivo HeartMate 3 Daniel Rocha

O cirurgião cardiotorácico José Fragata, responsável pela equipa médica que fez a cirurgia, disse que este doente sofria de uma insuficiência cardíaca e, também, de uma doença renal, que o impedia de receber o transplante de um dador, por não poder tomar medicamentos que evitassem a rejeição. “Tínhamos duas alternativas, que era deixá-lo à sua sorte, ou então dar-lhe um coração artificial, que fica dentro dele e que fica ligado num cabo ao exterior.”

Mas na cirurgia, que durou cerca de três horas, o que este doente acabou por receber, dentro do tórax, foi um dispositivo que ajuda o coração a bater do lado esquerdo. “O coração do doente está lá, não tirámos o coração. Só funciona é o lado direito”, explicou o cirurgião. Ou seja, a bomba, que é o coração, tem agora a ajuda de outra bomba, que é o implante que lhe foi colado. Segundo o que foi dito, o doente  “está excelente

O implante chama-se HeartMate 3 e é a terceira geração destes aparelhos. Os ensaios clínicos do primeiro modelo começaram no início dos anos 90, nos Estados Unidos. De acordo com José Fragata, já se fizeram cerca de 1200 implantes do HeartMate 3 e já há doentes a viverem com estes dispositivos há 11 anos. Transportado por um saco ao tiracolo, o HeartMate 3 tem baterias para que funcione.

“Aquilo que implantámos foi um sistema que consiste numa bomba, que aspira o sangue do ventrículo esquerdo do coração e o injecta na aorta”, explicou José Fragata, acrescentando que esta bomba está ligada a um fio externo, que sai pelo abdómen e que se liga a baterias. “É como um telemóvel que dura 17 horas e que à noite se tem de ligar, quando se chega a casa, com um carregador”, afirmou o cirurgião. “Em Portugal nunca tinha sido feito [este implante].”

Ainda segundo José Fragata, cada dispositivo custa cerca de 100 mil euros e a encomenda vem com dois aparelhos. Esta é apenas a “fase inicial”: “Temos ambição para continuar.” No Hospital de Santa Marta já está internado um segundo doente, também de 65 anos, que irá receber o implante.

Outros marcos em Portugal

Num comentário ao PÚBLICO, Miguel Mendes, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, não disfarça a satisfação pelo sucesso da equipa de José Fragata. “É um passo importante e uma excelente notícia”, referiu, apesar de notar que esta cirurgia já é feita em muitos países. “Mas é a primeira vez em Portugal que conseguimos iniciar um programa destes e tomar a decisão de assumir o elevado custo desta resposta para alguns doentes com problemas graves. Passamos a ter uma terapêutica útil para doentes graves”, sublinhou.

“Dependendo do valor que se dá a um ano de vida de uma pessoa – que, segundo valores internacionais, estará entre 20 e 50 mil euros –, o recurso a esta terapêutica dispendiosa parece fazer sentido”, considerou Miguel Mendes. No entanto, acrescentou, os recursos não são ilimitados e a opção por esta solução “tem de ser gerida com parcimónia”.

Miguel Mendes acredita que este tipo de soluções terapêuticas que agora chegaram a Portugal vai continuar a evoluir. “A próxima etapa será conseguir que este dispositivo possa ser carregado por indução, sem um cabo que sai do corpo para uma bateria externa, e por melhorar as superfícies internas onde circula o sangue, minimizando os riscos que este implante pode ter.”

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Ilustração do HeartMate 3 aplicado no coração

Antecipando os prováveis pedidos de muitos doentes que vão querer saber se também podem beneficiar deste tratamento, o presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia faz questão de sublinhar que esta resposta é para casos especiais que têm de ser avaliados pelos médicos. “Há candidatos melhores e piores. Mas o principal problema desta solução é mesmo o elevado custo e, por isso, a relação custo-eficácia tem de ser tida em conta.”

No mundo, o primeiro coração artificial totalmente autónomo foi implantado no norte-americano Robert Tools, a 2 Julho de 2001, no Hospital Judaico de Louisville, no Kentucky (Estados Unidos), e que ficou no lugar do seu coração debilitado. Esse, sim, um coração artificial. Robert Tools sobreviveu 151 dias com esse coração artificial – ou seja, sem fios ou tubos ligados a máquina exterior, enquanto todos os corações artificiais que vinham a ser experimentados desde o início dos anos 80 tinham uma parafernália de cabos, tubos e outros equipamentos.

Voltando a Portugal, foi em 2005 que se fez o primeiro “implante externo” de um dispositivo cardíaco (o BerlinHeart), que foi numa criança de dois anos, no Hospital de Santa Marta, e que depois recebeu um transplante. José Fragata também integrou essa equipa e explicou agora que esse implante tem, fora do corpo, dois tubos e duas bombas. Em 2013, este mesmo tipo de implante foi aplicado pela primeira vez no país a um bebé de três meses e meio.

E os corações artificiais que substituem por completo o coração de um doente em Portugal? Miguel Mendes confirma que em Portugal ainda não foi realizada nenhuma cirurgia com um coração artificial autónomo. “É uma área ainda experimental, que está a ser explorada sobretudo em centros de investigação e esse tipo de dispositivos ainda nem sequer são comercializados.”

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