Por mares cada vez mais navegados

No livro Nautas, o jornalista e escritor Octávio dos Santos segue os passos de Portugal na Sociedade da Informação.

Quando o PÚBLICO surgiu nas bancas pela primeira vez, no dia 5 de Março de 1990, ainda não havia internet tal como a conhecemos. E nas páginas de utilidades, lado a lado com cinemas ou farmácias, o jornal publicava (imagine-se) uma curta lista das caixas de multibanco disponíveis em Lisboa e Porto. Isto porque a rede multibanco começara em 1985, com emissão de cartões personalizados, e em 1987 já havia estabelecimentos a admitir pagamentos com cartão, mas as caixas públicas ainda rareavam. Quanto à internet, apesar de o PÚBLICO ser, à data da fundação, o único jornal português totalmente informatizado (computadores ligados em rede interna, com vários servidores), ainda recebia telexes; e o acesso à internet, quando surgiu, era feito só em terminais dedicados, os de maior capacidade.

Alguém com 20 anos que leia isto há-de rir-se de tamanho “atraso”. Mas não era atraso, era apenas o natural evoluir dos tempos. O que hoje pode ser visto, e manipulado, num banal telemóvel, precisava, nos anos 1970, de enormes computadores que enchiam salas e eram manipulados por homens de bata, em temperaturas controladas, como se estivéssemos nas instalações da NASA.

Em Portugal, nesta febril corrida tecnológica, houve um documento decisivo: o Livro Verde para a Sociedade da Informação, lançado em 1997, elaborado por especialistas de vários ministérios, numa altura em que era Ministro da Ciência e da Tecnologia o saudoso José Mariano Gago (1948-2015). Passados vinte anos, que balanço fazer dos seus pressupostos? Onde é que Portugal mais evoluiu? O que correu melhor e pior na concretização dos muitos objectivos ali estabelecidos? Correspondeu, o que se fez, à ousadia do que ali se propunha? Um livro, recente, vem tentar sistematizar, através de uma reunião de textos publicados entre 1997 e 2005, os passos então dados e o que se foi fazendo. Chama-se Nautas, é assinado pelo jornalista e escritor Octávio dos Santos, e os textos coligidos nas suas páginas (três dos quais foram distinguidos no Prémio de Jornalismo Sociedade da Informação) fazem uma leitura atenta e crítica desses tempos, à medida dos seus próprios passos. E não se julgue que Portugal andou atrasado nestas matérias, como muita gente pensará. Na sessão de lançamento do livro, aliás, uma das técnicas ali presentes recordou até um episódio curioso. Tinham convidado para vir a Portugal um guru em informatização bancária que aqui daria uma palestra. Numa conversa com ele, ela apercebeu-se de um pequeno equívoco, convidou-o a acompanhá-la até a um terminal multibanco, pegou nos seus cartões e mostrou-lhe o que já podia fazer com eles. Escusado será dizer que o guru, entre o espanto e o vexame, alterou a palestra perante o avançado “atraso” português.

Logo no primeiro texto do livro enumera-se o muito que estava em curso na ciência, na saúde, na educação, na cultura, na banca, nos transportes, no fisco (o modelo 2 do IRS já podia ser preenchido pela net desde 1996), na justiça (a Alta Autoridade Contra a Corrupção armazenara em discos ópticos, entregando-os na Torre do Tombo, todo o seu arquivo), nas comunicações, nas empresas. E ao longo dos restantes artigos e páginas seguimos o que se erguia ou até caía (exemplar é o caso do Terràvista) no irreversível caminho da navegação global, que tudo inevitavelmente atinge. Navegação é o termo que, propositadamente, dá título ao livro (com chancela do MIL, Movimento Internacional Lusófono, em cuja sede ocorreu o lançamento oficial): Nautas; aqueles que navegam, mareantes, marinheiros. Na capa, a imagem é de Fernando Pessoa pintado por Almada Negreiros, mas estilizado e alterado por Cláudia dos Santos (o título é “Fernando Pessoa actualiza-se”): na mão onde estava um cigarro está agora um smartphone; o n.º 2 da Orpheu está visível num iPad, assente na mesa; e em frente do poeta está, aberto, um computador portátil. Pois à sua semelhança foram também os portugueses entrando pelos caminhos da comunicação global que a internet permitiu e democratizou. De “argonautas” na era dos Descobrimentos, como refere Octávio dos Santos no texto que fecha o livro, a “cibernautas” na época da Sociedade da Informação. Já não no caminho marítimo, mas no “caminho electrónico para a Índia… e para todos os outros países do Mundo.” Talvez esteja aqui a concretização, conclui o autor, do Quinto Império profetizado por Agostinho da Silva. Por mares cada vez mais navegados.

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