O problema não são os robôs, o problema é a política

Os robôs e a inteligência artificial estão aí, implicando desafios para as sociedades contemporâneas, como reflectiu uma conferência realizada na Assembleia da República esta semana. Para uns os robôs são uma ameaça, conduzindo ao desemprego, para outros são a possibilidade de mais bem-estar.

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Naomi Tajitsu/Reuters

Imagine-se por um momento de cama, doente, com febre, sozinho. Dói-lhe a garganta. Sente o corpo dorido. Devia ir ao centro médico mais próximo mas faltam-lhe forças. É então que decide optar por uma vídeo-consulta através do telemóvel numa plataforma de cuidados de saúde na Internet. Ou então escolhe descarregar uma aplicação que utiliza inteligência artificial, com capacidade para processar grandes quantidades de dados em segundos, para fazer triagem e diagnóstico de doenças. É fácil, cómodo, barato, acessível a qualquer pessoa e poupa-se tempo.

Já a qualidade do serviço divide opiniões. O mesmo acontecendo com os complexos efeitos sociais, no trabalho e no desemprego, e éticos, ao nível da definição dos limites de acção destas tecnologias, para além das questões de privacidade e segurança, decorrentes da exaustiva documentação pública da vida privada.

Num dos painéis da cimeira tecnológica de Lisboa, Web Summit, que juntou em Novembro Gary Mudie, director da Babylon (aplicativo médico para consultas à distância) e Peter Bialo, representante de uma plataforma de cuidados de saúde na rede, a DocPlanner, que permite diagnósticos ou marcar consultas, este foi um dos temas em debate. Ambos reflectiram que os cuidados de saúde estão a sair dos hospitais e clínicas para o mundo virtual, misto de desafios, oportunidades e incertezas.

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Anteontem, na Sala do Senado da Assembleia da República, questões como esta foram reflectidas na conferência Era Digital e Robótica – Implicações nas Sociedades Contemporâneas, que num primeiro painel contou com especialistas e num segundo com intervenções dos representantes dos grupos parlamentares.

O facto de ter sido uma iniciativa conjunta das Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Educação e Ciência, do Trabalho e Segurança Social e de Cultura e da Comunicação, Juventude e Desporto, dão a real dimensão da transversalidade e complexidade do que se discute.

Não são questões tecnológicas, mas sim de sociedade. São sobre quais são os nossos desafios civilizacionais no presente e futuro próximo. Como interrogava, na sessão de abertura, Edite Estrela, na condição de presidente da Comissão de Cultura, “a inovação tecnológica vai-nos libertar ou escravizar?”, “o desemprego destruído será substituído por novos empregos?” ou “os robôs vão contribuir para a nossa felicidade ou levar-nos à depressão?”. Uma coisa é certa: ninguém quer perder a marcha tecnológica. A questão é saber se num momento de aceleradas e profundas transformações até que ponto estarão as sociedades contemporâneas, política, social e economicamente, preparadas para se reorganizarem, acolhendo modificações, ao mesmo tempo que garantem equidade sem que obstruam o progresso.

Neste momento fica a ideia de que existe mais apreensão que optimismo. Na referida conferência da Web Summit, os dois intervenientes foram prudentes dizendo que, em muitas funções, os médicos ou enfermeiros, não poderão ser substituídos por robôs, sistemas automatizados ou inteligência artificial, mas em muitas delas sim. Ao nível da automação isso já sucede em muitas especialidades. E a tendência é crescente. Em alguns casos estamos a falar de colaboração entre pessoas e máquinas. E noutros de substituição de pessoas por máquinas.

Este tipo de medicina à distância, com os nossos telemóveis transformados em clínicas, já uma realidade no Reino Unido onde a Babylon opera. Há semanas, no Financial Times, era referido que a companhia está a tentar criar o maior repositório de conhecimento médico, uma espécie de “super-médico” que faz triagem, diagnósticos e até tratamentos por telemóvel. Prevê-se que a nova versão da aplicação, em Abril, venha a ser o primeiro robô clinicamente certificado para providenciar diagnósticos, baseados nas capacidades de big data e inteligência artificial, que permitem a conexão entre gigantescas bases de dados.

E este é apenas um exemplo entre muitos outros do que já está a acontecer. Na percepção pública os sectores laborais afectados nos últimos anos pelas transformações tecnológicas, eram circunscritos a profissões não-criativas. Agora começa a perceber-se que não é assim, com as aptidões de big data e de inteligência artificial, capazes de trabalhar informação em massa e obter conhecimento mais avançado, que pode ser aplicado num robô, mas também num telemóvel, num programa informático ou em qualquer instrumento preparado para interagir com humanos.

Desde que a máquina tenha informação para analisar e capacidade para a racionalizar, consegue gerar um plano de trabalho e uma estratégia para o executar. Ou seja, serviços, transportes, ou em emprego qualificado, de áreas tão diversas como a medicina, direito, publicidade, contabilidade, jornalismo, banca, e tantas outras, irão confrontar-se com esta realidade.

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Robô desenvolvido pelo Instituto Fraunhofer encontra a posição ideal para a intervenção cirúrgica com uma agulha Fraunhofer IPA

Demorou para que os políticos acordassem para o fim da velha era industrial. Mas agora o futuro é já o presente. Uma investigação da Universidade de Oxford, de 2013, sugeria que quase metade (47%) dos postos de trabalho existentes na actualidade nos EUA estão em “alto risco” de desaparecer nos próximos dez a 20 anos, enquanto 33% estão em risco e 19% em risco médio. E o motivo é claro: pela primeira vez a tecnologia está a avançar sobre as chamadas tarefas “cognitivas” ou “não-rotineiras.”

Em Janeiro o ex-Presidente Barack Obama tinha avisado que a automatização iria tornar muitos dos trabalhos da classe média obsoletos e há dias o conhecido empreendedor Mark Cuban disse que as políticas de Trump em relação ao emprego (proteccionismo e leis anti-imigração) irão fracassar porque na linha do que já disseram outros (do cientista Stephen Hawking ao magnata Elon Musk) o desemprego em massa veio para ficar.

Na sua visão “haverá cada vez menos trabalhos que um robô não saiba fazer melhor do que um humano.” Foi também com esse raciocínio que Bill Gates propôs a criação de um imposto para robôs. E é também essa a filosofia de quem defende o Rendimento Básico Universal – compensação para os que viram a actividade ficar obsoleta e não tiveram tempo de adaptação.

Historicamente as revoluções tecnológicas acabam por tornar ultrapassadas actividades, mas criam muitas outras, embora diferentes. Mas desta vez, a velocidade, a escala e o facto de as máquinas serem cada vez mais inteligentes, gera a sensação de que poderemos estar perante um cenário de desemprego estrutural, como frisou Nuno Teles, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

Claro que há quem não se reveja nestes cenários, alegando que a quarta revolução industrial não difere das anteriores. Algumas actividades serão afectadas, mas surgirão outras áreas promissoras que compensarão perdas, fortalecendo o aumento de emprego, o crescimento e o investimento. Um relatório do ano passado (The Future of Jobs) do Fórum Económico Mundial referia que 65% das crianças que estão agora a entrar nas escolas vão ter profissões que ainda nem sequer existem.

Da mesma forma existe quem advogue que a inteligência artificial deve ser vista como uma oportunidade de expansão do potencial humano e não como a sua substituição. Um especialista em soluções artificiais, Andy Peart, expõe que a inteligência artificial será tão essencial para os negócios de serviço ao cliente como a Internet há 20 anos ou as aplicações móveis há cinco anos.

O que não significa que os humanos sejam afastados do mercado de trabalho. Até porque as máquinas, no caso os robôs, já conseguem fazer muitas coisas (manipulação industrial e tarefas repetitivas, navegação, interacção, próteses), como explicou o professor e investigador Pedro Lima, do Instituto Superior Técnico, mas ainda existem coisas que não fazem bem (reconhecer e compreender o mundo envolvente, dialogar fluentemente, aprender com a experiência, ser versáteis ou caminhar como os humanos).

“Pessoa electrónica”

Na verdade a capacidade real dos robôs e da inteligência artificial é algo ainda muito em aberto, com diferentes velocidades de apreensão. Isso mesmo reflectiu o artista Leonel Moura, que inaugurou a exposição Arte Robótica nos Passos Perdidos, dizendo que hoje há máquinas muito avançadas “com capacidade de tomar decisões” e de “conceber outras máquinas.”

Foram algumas dessas máquinas – carros sem condutor, robôs de assistência médica, sistemas de vigilância com inteligência artificial, drones autónomos ou robôs industriais – que estiveram em destaque num recente debate do Parlamento Europeu, que votou uma proposta (não vinculativa) de estabelecimento de regras que considerem o seu impacto. O Parlamento atribuiu aos robôs o estatuto de “pessoa electrónica”, um regime de seguros obrigatórios para os veículos autónomos sem condutor, um código de conduta para os engenheiros de robótica e a criação de uma agência europeia para a robótica e inteligência artificial.

Estas são questões jurídicas. Mas a discussão mais vasta que engloba todas as outras é se vamos ter a capacidade de reconstruir as nossas sociedades para que, conforme as máquinas inteligentes se vão tornando mais eficientes, aumentando a produtividade e gerando mais ganhos, a diminuição da procura de trabalho humano resulte em lazer e bem-estar, com rendimentos repartidos de forma mais equitativa.

Aliás há uns anos presumia-se que todos iríamos trabalhar menos e ter mais tempo para o lazer, deixando a tarefas mais pesadas para as máquinas, melhorando a qualidade de vida. Hoje a percepção é que a situação da maioria piorou, lucrando uma minoria. Os postos de trabalho parecem diminuir e o mundo parece dividir-se entre os que trabalham de mais, ou em condições precárias, e os que simplesmente não têm trabalho.

Mas a solução, tal como não parece ser o proteccionismo nem a xenofobia, também não é apontar a culpa aos robôs. Os robôs e a inteligência artificial significam vantagens, desde que em simultâneo sejamos capazes de questionar o modelo de sociedade que temos vindo a edificar, nomeadamente ao nível da redistribuição da riqueza gerada pelo crescimento tecnológico, e também no plano dos novos paradigmas educacionais, exigindo-se novos processos e conteúdos.

Seremos capazes de responder a esse desafio? Não existem dúvidas de que nos próximos tempos mais actividades e indústrias serão ultrapassadas. Mas se algumas velhas políticas também se tornarem obsoletas e novas e mais justas forem instituídas, teremos a certeza de que robôs e humanos serão amigos fraternos.

 

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