O Prof. Mambo e Schrödinger

Belo compara a homeopatia com a vacinação, o que é absurdo. A diferença é abismal.

Lemos no PÚBLICO de 29 de Janeiro um artigo de Fernando Belo, em que este opina sobre ciência e falsa ciência, temas que nos interessam. Em defesa da homeopatia faz mais do mesmo, ou seja, usa argumentos de autoridade e todo um jargão que aparenta ser científico, mas que não tem qualquer significado.

Note-se que, entre os artigos de opinião favoráveis à homeopatia, menciona o “testemunho digno” de Paulo Varela Gomes (e nisso estamos de acordo) e o depoimento da “professora da Faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa” Telma Gonçalves Pereira (não consta que seja professora nessa faculdade, mas isso é irrelevante). Mais adiante especula sobre o comportamento de “um cientista a sério”, ficando implícito que nós, opositores à homeopatia, não o somos. Tudo argumentos de autoridade puros e duros, ou seja, Belo diz que devemos acreditar na homeopatia porque há pessoas dignas e importantes que acreditam, e porque as que se opõem não são “cientistas a sério”. Toda a sua argumentação passa pela enumeração de figuras de autoridade, de Montagnier a um psicanalista francês, que terá feito um workshop com os xamãs africanos para aprender a tratar os “indígenas” que vivem em Paris. Por muito divertido que seja este desfile de títulos nobiliários, a ciência não se baseia neles. Baseia-se em provas experimentais, que possam ser confirmadas por grupos de investigação. Uma coisa não é verdade por haver pessoas notáveis ou com histórias engraçadas que dizem que é verdade. Essa é uma das razões por que em ciência qualquer um pode ter razão desde que apresente provas. Pode até de início estar sozinho. Quando cem cientistas nazis contestaram Einstein, este perguntou: “Porquê cem? Se eu estivesse errado bastaria um.”

Belo invoca ainda o argumento clássico da homeopatia em crianças e animais, cujas aparentes melhorias, na sua opinião, não podem ser explicadas pelo efeito placebo. É mera retórica e podemos responder que quem avalia as melhorias em animais e bebés não são os próprios, mas os donos dos primeiros ou os pais dos segundos, todos eles adeptos da homeopatia. A este respeito, Belo indica sítios da Web. Mas a literatura científica não são páginas avulsas da Internet, nem se traduz por um ou dois trabalhos escolhidos a dedo, pois há disparates em todo o lado (a Internet está repleta deles!). No caso das ciências médicas, o padrão são revisões sistemáticas da literatura, que de um modo transparente levam em conta todos os ensaios clínicos sobre um assunto. É esta a exigência para qualquer tratamento médico que mereça esse nome. Belo pode não gostar, mas é isso a medicina baseada na ciência. Se a homeopatia quer ser uma ciência alternativa, então deve tratar doenças alternativas em pacientes alternativos e cobrar dinheiro alternativo.

Espantosamente, Belo invoca o artigo de Jacques Benveniste, publicado em Junho de 1988 na Nature, que apoia uma “memória da água”, coisa que daria jeito aos homeopatas que existisse. Mas é fantasia. Belo “esquece-se” de referir que esse artigo é uma fraude, desmascarada no mês seguinte na mesma revista, após a equipa de Benveniste ter tentado, sem sucesso, repetir os resultados na presença de uma comissão independente de peritos. Das duas uma: ou Belo acha que a literatura científica não interessa para nada e não se socorre do artigo de Junho, ou acha que interessa e não pode ignorar o de Julho. Claro que o que nos deixa é mais uma marca da pseudociência: escolher acriticamente algo que favoreça o seu ponto de vista e deitar fora tudo o que não convenha.

Belo compara a homeopatia com a vacinação, o que é absurdo. A diferença é abismal: nas vacinas há algo com efeito fisiológico: vírus ou bactérias (inteiros, em partes ou toxinas produzidas por esses agentes), que visam treinar o sistema imunitário. Aplica-se a doenças infecciosas e sabemos bem porque funcionam. A homeopatia não funciona, porque não há maneira nenhuma de poder funcionar.

O opinador espera talvez que surja uma prova que demonstra a eficácia da homeopatia e que um qualquer avanço mirabolante do conhecimento justifique o seu modo de acção. É certo que em ciência tudo é passível de ser posto em causa, face a novas observações ou experiências. Mas nem tudo está em pé de igualdade. Ninguém espera que se demonstre que a Terra seja plana. Com a homeopatia passa-se o mesmo: não são necessários mais estudos. Como tão bem disse Carl Sagan, devemos ter o cérebro aberto a todas as ideias, mas não tão aberto que os miolos nos caiam da cabeça.

Por último. O advogado da homeopatia insurge-se contra a medicina molecular. Se lhe for dado escolher entre o Prof. Mambo, que promete curar tudo, e Schrödinger (o Prof. não é preciso), o físico austríaco que descobriu a equação com base na qual se modelam as moléculas e se desenvolvem novos medicamentos, escolheria o Prof. Mambo. É livre de o fazer. Mas, se não se importa, nós preferimos Schrödinger, cuja equação tem funcionado comprovadamente para descrever as moléculas de que somos feitos.

Cientistas

P.S.: Onde se lia "um psicanalista francês não identificado", corrigiu-se para "um psicanalista francês", porque Fernando Belo, no artigo citado, identificou o psicanalista.

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