O “Brexit” geológico (ou como a ilha da Grã-Bretanha se separou da Europa)

É preciso recuar, pelo menos, 450 mil anos. A história envolve um lago que transborda e inundações catastróficas. As provas estão em vales e buracos gigantes escavados pela erosão no fundo do mar. Este é o “Brexit” 1.0, dizem os investigadores. Aquele em que ninguém votou.

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Ilustração do território que ligava a Grã-Bretanha à França há 450 mil anos Imperial College de Londres/Chase Stone

A separação da Grã-Bretanha da Europa continental começou há mais de 400 mil anos e em duas etapas. Primeiro, um lago glaciar transbordou e depois houve uma inundação catastrófica que acabou por partir o território, demonstra um estudo publicado na edição desta semana da revista científica Nature Communications. As provas geológicas estão num vale, no fundo do mar do canal da Mancha.

A ideia de uma inundação catastrófica estar na origem da ilha da Grã-Bretanha pode parecer familiar e há motivos para isso. A hipótese foi apresentada há vários anos, mas faltavam as provas geológicas. Dez anos depois de um estudo que dizia que o desmoronar de uma barragem natural que retinha um lago de montanha provocou uma inundação catastrófica, os investigadores Sanjeev Gupta e Jenny Collier, do Imperial College de Londres, assinam um novo artigo na revista Nature Communications com os detalhes da abertura do estreito de Dover, a parte do canal da Mancha em que a Grã-Bretanha está mais próxima do continente europeu.

Segundo explicam, a separação geológica da Grã-Bretanha da Europa continental – ou o “Brexit” 1.0, como referem no comunicado do Imperial College de Londres – terá sido um processo que decorreu em duas etapas de um duro e irreversível processo de erosão. A separação geológica da Grã-Bretanha do continente europeu foi o resultado de vários acontecimentos naturais aleatórios. Muito diferente do “Brexit” a que hoje assistimos após um processo democrático (num referendo a 23 de Junho de 2016) e que vai afastar o Reino Unido da União Europeia.

Assim, primeiro um lago glacial transbordou há 450 mil anos e depois, talvez há 160 mil anos (os investigadores não conseguem precisar a data), o território foi atingido por inundações catastróficas que fizeram o resto e alagaram o chão que nos unia. Perceber como ocorreu esta separação “tem implicações para a nossa compreensão de como a criação da ilha da Grã-Bretanha alterou a colonização das ilhas Britânicas e mudou a drenagem de água do Noroeste da Europa”, refere o resumo da Nature Communications.

Mas vamos voltar atrás. Há muito, muito tempo, numa altura em que o Sul da Inglaterra ainda estava ligado à Europa, a região foi invadida por glaciares, com o gelo a estender-se pelo mar do Norte, da Grã-Bretanha à Escandinávia. “Com o baixo nível do mar, todo o canal da Mancha era terra seca, uma paisagem de tundra congelada, atravessada por pequenos rios”, descrevem os investigadores do Imperial College. Onde hoje vemos o verde que cobre os penhascos brancos de Dover, falésias com uma fachada composta de giz (uma espécie de calcário) na costa inglesa em frente ao estreito de Dover e à França, existiu um mundo gelado marcado aqui e ali por quedas de água.

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Morfologia do fundo do mar no Canal da Mancha, na zona do estreito de Dover Imperial College de Londres/ Sanjeev Gupta/ Jenny Collier

Os investigadores do Imperial College já tinham dados geofísicos que apontavam para a existência de vales gigantes no fundo do mar, na parte central do canal da Mancha. Num artigo científico publicado em 2007 na Nature, reafirmaram também que há 450 mil anos um lago no mar do Norte, formado em frente a um lençol de gelo, transbordou as margens, reforçando uma hipótese que surgiu há cerca de um século. O lago era abastecido pelo Reno e pelo Tamisa e retido por uma barreira natural, que acabou por se romper e provocar durante vários meses o derrame de grandes quantidades de água, estimadas num milhão de metros cúbicos por segundo.

Esta torrente de água inundou a região, actualmente ocupada pelo canal da Mancha, alterou os cursos dos rios e criou uma barreira intransponível para as migrações humanas e de fauna vindas do continente.

Sete piscinas alinhadas

Mas estas ideias sobre lagos que transbordam e inundações catastróficas eram, há dez anos, apenas hipóteses. Faltavam as provas. Agora, os mesmos investigadores, com cientistas de outros institutos em França e na Bélgica, demonstram que a abertura do estreito de Dover no canal da Mancha aconteceu, de facto, em duas etapas. E, desta vez, os investigadores descrevem os detalhes da ruptura da barreira de rocha no estreito de Dover, entre Dover (na Grã-Bretanha) e Calais (em França).

O “Brexit” 1.0 começou numa era glaciar, quando um lago começou a transbordar, galgando o cume da barreira natural de rocha. A água que caía em “cataratas gigantes” foi causando erosão na escarpa da rocha composta de giz, que foi ficando cada vez mais gasta e frágil. A barreira acabou por se quebrar e libertar enormes quantidades de água que caía no fundo do vale. Aqui, a força da água fez nascer enormes buracos. Os cientistas chamam “piscinas de mergulho” a estas depressões profundas criadas nas zonas onde a água em catarata atingia o solo.

“As piscinas de mergulho no estreito de Dover são enormes – com vários quilómetros de diâmetro e cerca de 100 metros de profundidade e foram perfuradas em rocha sólida. Há cerca de sete piscinas de mergulho em linha entre os portos de Calais e Dover”, refere o comunicado do Imperial College, que adianta ainda que o perfeito alinhamento destas depressões sugere que a água caiu de apenas uma barreira de rocha, presumindo-se que tivesse 32 quilómetros de comprimento e 100 metros de altura – “a ponte terrestre entre a Europa e o Reino Unido”, conclui.

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Perfil geofísico do subsolo do fundo do mar onde se vê uma depressão provocada pela erosão da água Imperial College de Londres/ Sanjeev Gupta/ Jenny Collier

Este terá sido o primeiro capítulo da abertura do estreito de Dover. Não se sabe muito bem como, mas centenas de milhares de anos mais tarde um novo sistema de vales (chamado canal Lobourg) foi escavado por fortes inundações que atravessaram o estreito.

Completar uma parte do puzzle geológico sobre a inundação no canal da Mancha demorou uma década. E ainda há peças em falta. Afinal, se a separação começa com a força das águas que saíram do lago, o que o fez transbordar? “Ainda não sabemos”, responde Jenny Collier, que arrisca avançar com a hipótese de uma quebra na camada de gelo que tenha provocado uma onda que, por sua vez, tenha feito o caminho até ao cume da rocha de giz que servia de barragem e, assim, iniciado a catarata. Depois, adianta ainda, talvez um tremor de terra (a actividade sísmica ainda hoje é uma característica daquela região) tenha provocado uma falha no cume da rocha, enfraquecendo a barreira natural e provocando o seu colapso.

Os vales submersos (ou piscinas de mergulho) foram detectados ainda nos anos 60, quando se fizeram sondagens nos fundos marinhos do estreito de Dover. Ninguém sabia como se tinham formado, mas foram baptizados como Fossa de Dangeard, em homenagem a um dos fundadores da oceanografia moderna, Louis Dangeard. A presença destas piscinas (e o facto de estarem cheias de cascalho solto e areia) fez com que fosse necessários desviar a rota do túnel da Mancha, que começou a ser construído em 1988. Três anos antes, em 1985, um geólogo marinho chamado Alec Smith sugeriu que estes enormes buracos tinham sido formados por quedas de água. Estava certo e o estudo agora publicado prova-o.

Além de outras peças do puzzle, falta também definir um “calendário dos acontecimentos” daquele que seria o manual de instruções para afastar a Grã-Bretanha da Europa. Geologicamente falando, claro. Para perceber com mais precisão quando é que todas as etapas ocorreram, os investigadores vão tentar analisar os depósitos de sedimentos que estão no fundo das piscinas de mergulho. O desafio maior, prevêem, será mesmo vencer as mudanças da agitada maré e chegar até ao local.

“Não fosse por um conjunto de circunstâncias geológicas aleatórias, a Grã-Bretanha podia ter permanecido ligada à Europa continental, saltando para o mar da mesma forma que a Dinamarca”, refere o comunicado. O investigador Sanjeev Gupta acrescenta: “A ruptura desta ponte terrestre entre Dover e Calais foi indiscutivelmente um dos eventos mais importantes da história britânica, ajudando ainda hoje a formar a nossa identidade. Quando a idade do gelo terminou e os níveis do mar subiram, inundando o chão deste vale para sempre, a Grã-Bretanha perdeu sua ligação física ao continente. Se não fosse essa ruptura dramática, a Grã-Bretanha ainda seria parte da Europa. Este é ‘Brexit’ 1.0 – o ‘Brexit’ em que ninguém votou.”

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