No cinema os cientistas são loucos, maus ou perigosos

Há coisas inacreditáveis que são mesmo verdade e outras que parecem óbvias, mas que não resistem a uma análise mais cuidada. Caixas de óculos despenteados do sexo masculino, obcecados, desligados do mundo e da humanidade. Para o cinema os cientistas são assim. A sério?

Foto
Doc Brown (Christopher Lloyd) e o adolescente Marty McFly (Michael J. Fox) em Regresso ao Futuro DR

Conheço muitos cientistas. Mas sei que a maior parte das pessoas se cruza com os cientistas principalmente na ficção. E desde há muito que o conhecimento inspira medo na literatura ocidental, sendo muitas vezes uma ponte entre o bem e o mal. A partir do século XX o cinema fez questão de usar o som, as cores, as animações gráficas e outras tecnologias tornadas possíveis pela ciência para construir uma imagem terrivelmente negativa dos cientistas.

Desenhe um cientista

Em 1957 as antropólogas norte-americanas Margaret Mead e Rhoda Métraux pediram a alunos de escolas secundárias para completarem a afirmação “quando eu penso num cientista, penso em…”. A maior parte pensou num homem de meia-idade, de bata branca e óculos, com a barba mal feita, que trabalhava longas horas num laboratório. Inteligente, cuidadoso, paciente. Mas que podia vender segredos ao inimigo, ter um trabalho perigoso e não acreditar em Deus. Não fazia ideia o que se passava no mundo, não dava atenção à mulher, nunca brincava com os filhos e trazia coisas assustadoras para casa. Inspiravam mais respeito do que atracção.

Para além de uma persistência notável, esta representação tem vários problemas. Os cientistas não são homens. Mesmo em 1957 já algumas mulheres (como Marie Curie) se tinham destacado. E não são necessariamente ermitas. Fazem parte de grupos de investigação, vão a conferências e publicam em revistas científicas. O secretismo assusta mas é pouco plausível que alguma descoberta relevante seja feita por um despenteado sozinho numa cave. Mas voltemos ao ponto em que estávamos.

Entre 1966 e 1977, o historiador David Wade Chambers pediu a 4807 crianças canadianas para desenharem um cientista. Procurou identificar nos desenhos sete elementos da imagem padrão: bata, óculos, barba, equipamento de laboratório, livros, engenhocas, inscrições com fórmulas e palavras como “eureka”. Apenas algumas meninas desenharam mulheres.

Chambers concluiu que quanto mais velhos eram os alunos, mais componentes do estereótipo incluíam. Notou ainda que alguns desenhos seguiam representações alternativas, próximas do imaginário de Frankenstein ou de Dr. Jekyll/Mr. Hyde. Do pré-escolar até ao 5º ano a frequência destas representações místicas aumentava sempre. Chambers sugeriu que ambas as imagens – a padrão (homem de bata e óculos rodeado de fórmulas) e as alternativas místicas – eram criadas a partir de representações populares, da banda desenhada, televisão e cinema.

No livro Mad, Bad and Dangerous?: The Scientist and the Cinema, o escritor norte-americano Christopher Frayling discute como ao longo do século XX os cientistas foram retratados no cinema. Em 39% dos filmes de terror exibidos no Reino Unido entre 1931 e 1984 os cientistas foram as ameaças. Frayling distingue entre cientistas “santos” (tipicamente biografias de cientistas reais) e “diabos” (os da ficção: loucos, maus e perigosos). Para Frayling, os “diabos” excedem em muito os “santos”. Ficam aqui alguns exemplos de filmes com cientistas.

Metropolis (1927)

Rotwang é um cientista maléfico que constrói um robô com o aspecto de mulher, para recriar a sua falecida amada. Tem cabelo branco desgrenhado e uma mão de ferro preta a substituir a que perdeu num acidente de laboratório. Usa trajes medievais e vive numa casa gótica atulhada de bobines e líquidos borbulhantes, algures entre o ocultismo e a ciência. Talvez o cientista mais influente da história do cinema.

Dr. Strangelove (1964)

Um cientista, antigo nazi, aconselha o Presidente dos Estados Unidos durante uma crise nuclear, fazendo contas macabras e cenários apocalípticos. Anda numa cadeira de rodas, usa óculos com lentes fumadas e não controla os movimentos de uma das mãos, que tem sempre coberta com uma luva preta, o que acentua a ligação a Rotwang. Sem humanidade e desligado das consequências das suas decisões.

Regresso ao Futuro (1985)

Dr. Emmett Brown é um cientista que inventa uma máquina do tempo. Doc Brown não é mau, é um herói. Mas dificilmente podia ter um ar mais louco: despenteado, usa óculos e acessórios extravagantes. O seu trabalho envolve plutónio roubado a terroristas e é suficientemente perigoso para alterar o curso da história.

Querida, Encolhi os Miúdos (1989)

Wayne Szalinski é um cientista com óculos “fundo de garrafa”, despenteado e obcecado. Trabalha num covil tecnológico e é chamado para as refeições por campainhas com botões instalados na cozinha. Acidentalmente encolhe os seus filhos e os do vizinho.

Foto
Jodie Foster no papel da Dra. Eleanor Arroway DR

Contacto (1997)

A Dra. Eleanor Arroway descobre um sinal de rádio com origem extraterrestre. Uma mulher jovem, bonita e inteligente. Gosta de chá e que lhe chamem Ellie. Foge ao estereótipo e é muito mais parecida com os cientistas que conheço, o que não será alheio ao facto do filme se basear num romance do astrónomo e divulgador de ciência Carl Sagan.

Gru, o maldisposto (2010)

O super-vilão Gru é ajudado por pequenas criaturas (Minions) a fazer malvadezas, como roubar a Lua. Conta também nos seus quadros com o Dr. Nefario, um cientista de bata branca, óculos e ar de louco, que inventa coisas perigosas com aplicações malvadas.

 

O cinema não tem criado muitos cientistas com que nos identifiquemos. Não queremos ser o Doc Brown. Nem a namorada do Doc Brown. Há alguns filmes com cientistas verdadeiramente interessantes, mas precisamos de mais. Encarnações de Rotwang já há que cheguem.

Bioquímico

Sugerir correcção
Ler 6 comentários