Medicamento usado para a hipertensão é capaz de apagar más recordações

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A descoberta pode ajudar a desenvolver terapias de combate ao stress pós-traumático Miguel Madeira (arquivo)

E se bastasse engolir um comprimido para enviar para um armário escuro, fechado a cadeado, as recordações mais dolorosas que todos querem esquecer mas que a memória teima em trazer à tona? Uma equipa do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Amsterdão, Holanda, provou que isso não é ficção científica.

Segundo esta equipa, que publicou os seus resultados na prestigiada revista “Nature Neuroscience”, basta tomar um medicamento, o propanolol, que se baseia em moléculas conhecidas como bloqueadores beta ou beta antagonistas, bloqueadores dos receptores da noradrenalina. São medicamentos usados no tratamento da hipertensão. Mas também actuam nos processos químicos do medo, na região cerebral da amígdala.

Basta tomar este propanolol no momento exactamente anterior ao da evocação da recordação que desejamos apagar. E ela desaparece, interrompendo os mecanismos naturais de invocação da memória, constatou a equipa.

A experiência em que a equipa se baseou consistia em mostrar aranhas a um grupo, acompanhadas de um estímulo doloroso. Passadas 24 horas repetiram a experiência, sendo que metade do grupo tomou propanolol e a outra metade um placebo. Na metade medicada o medo provocado pela recordação da experiência anterior não foi detectado.

As primeiras experiências com químicos que interrompiam como que os primeiros “frames” da invocação de uma recordação foram conhecidas ainda o ano passado, em Outubro, quando uma equipa de investigadores norte-americanos e chineses conseguiu interromper os mecanismos neurológicos de invocação de memórias em ratinhos.

Na altura os investigadores, do Brain and Behaviour Discovery Institute da Geórgia EUA, e do Institute of Brain Functional Genomics, de Xangai, na China, descobriram uma enzima, Alfa-CaMKII, que controlava, de uma forma um pouco misteriosa, a aprendizagem e o armazenamento de recordações nos animais. Decidiram então manipular geneticamente ratinhos para que não tivessem um gene responsável pela produção desta enzima.

Experiências conduzidas pela equipa provaram que este ratinhos “knockout”, a quem faltava o gene produtor da enzima, tinham problemas em pequenos jogos de memória que outros ratinhos normais não demonstravam, como explicaram então na revista científica “Neuron”.

Parecia então estar-se perante a possibilidade de desenvolvimento de uma molécula capaz de apagar recordações. Mas a equipa pensava que era cedo para pensar numa pílula contra más recordações. Bom, talvez não fosse tão cedo quanto pensavam.

A ciência sabe hoje que o mecanismo de memória não se restringe a uma área estanque do nosso cérebro e que podem ficar armazenados numa espécie de zonas sombra onde, senão desaparecem, ficam encerrados numa espécie de baús perdidos de onde dificilmente regressarão. O que a equipa holandesa conseguiu foi um mecanismo químico para provocar esse facto.

Ao diário espanhol “El Mundo” Joseph Ledoux, investigador da universidade de Nova Iorque, envolvido em experiências com ratinhos nesta área, afirma que este é “um trabalho com resultados muito prometedores no tratamento das memórias persistentes e dolorosas como as que são experimentadas em caso de stress pós-traumático”.

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