Lixo, calor e ninhos: as cegonhas foram seduzidas pelo Inverno português

Muitas cegonhas portuguesas deixaram de migrar no Inverno. Esta mudança de comportamento está ligada ao aquecimento global e aos alimentos encontrados nos aterros sanitários, mostra um novo estudo. Mas estes campos de lixo têm os dias contados e os cientistas querem ver como a espécie vai adaptar-se

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Três cegonhas-brancas num ninho DR
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Cegonhas num aterro sanitário DR

É Inverno, o camião do lixo surge carregado e as cegonhas aprontam-se para a caça. O lixo irá ser despejado e rapidamente aparecerá uma máquina que o vai espalhar e cobrir de terra. É durante este intervalo, depois de o camião chegar e antes de a terra esconder o lixo, que as cegonhas obtêm uma refeição. Os alimentos podem ser restos de carne, de peixe, algo mais “escabroso como um animal morto” ou pouco comestível como “um pedaço de computador”, conta ao PÚBLICO a bióloga portuguesa Aldina Franco, da Faculdade de Ciências Ambientais da Universidade de East Anglia, em Norwich, no Reino Unido, que tem estudado esta ave.

Os aterros são um festim para as cegonhas e uma peça fundamental que ajuda a explicar uma mudança de comportamento nesta espécie. Desde a década de 1980 que mais e mais cegonhas-brancas (Ciconia ciconia) portuguesas desistiram de migrar para a África subsariana durante o Inverno, mantendo-se por cá. Hoje é possível encontrar abaixo do rio Tejo muitas cegonhas residentes nos 12 meses, e também aves vindas da Alemanha e da Polónia que substituíram o Verão africano pelo Inverno da Península Ibérica. Um censo feito em 2015 contou 14.000 indivíduos em Portugal durante a temporada fria, mostrando a dimensão da nova realidade.

Pensa-se que as alterações climáticas e o aumento das temperaturas nos meses mais frios também desempenharam um papel nesta mudança. Mas não se conhece muito bem como as cegonhas vivem, qual o seu quotidiano e quão dependentes estão dos aterros. Por isso, um estudo liderado por Aldina Franco, e que contou com investigadores da Universidade de Lisboa, analisou o dia-a-dia de 17 cegonhas residentes anuais em Portugal e descobriu que os aterros são uma fonte de alimento importante para estas aves, principalmente no Inverno, quando algumas chegam a voar 50 quilómetros até ali.

O artigo, publicado em Março na revista de acesso livre Movement Ecology, é um passo inicial para compreender como uma ave altera comportamentos tão importantes como as migrações sazonais. E é uma informação de base para analisar o impacto de uma mudança futura: o fim dos aterros.

Aprender a cuidar do ninho

Apenas 20% das cegonhas-brancas que vivem em Espanha continua a viajar até África. Apesar de não haver este tipo de dados para Portugal, Aldina Franco acredita que a proporção é semelhante. Não se sabe exactamente o que leva cada cegonha a decidir ficar. As cegonhas vivem até 30 anos e têm tempo para evoluir no seu comportamento. A investigadora tem algumas hipóteses, já lá vamos. Mas as observações entre 2012 e 2014, apresentadas no artigo, já mostraram diferenças entre a população que fica e a que vai.

“Este estudo levou-nos a identificar comportamentos fantásticos [em Portugal]. As cegonhas tomam conta do ninho o ano todo”, conta Aldina Franco, explicando que elas restauram o ninho quando há algum fenómeno natural que o destrói, colocando pauzinhos. “Quando as cegonhas vão passar o Inverno a África, não estão agarradas a nenhum local de nidificação”, diz a investigadora, dando ainda o exemplo dos pardais que, apesar de viverem em Portugal todo o ano, no Inverno não estão no ninho, preferindo agrupar-se em bandos e voar por outros locais.

A cientista interpreta este novo comportamento de cuidado com os ninhos das cegonhas residentes num contexto adaptativo. “Sabemos que as cegonhas que são residentes começam a nidificar antes do que as que chegam da migração”, diz Aldina Franco, acrescentando que elas têm o ninho pronto e começam a pôr os ovos logo que o tempo melhora. “Ter o comportamento de residente traz vantagens.”

Para analisar estes aspectos, a equipa de cientistas utilizou pequenos aparelhos de detecção remota que foram nas costas de 48 cegonhas, capazes de enviar dados diários sobre o local geográfico onde elas se encontravam e informação que permitia inferir os seus comportamentos. Os aparelhos foram desenvolvidos pela equipa, graças ao trabalho do investigador João Paulo Silva, do Centro de Ecologia Aplicada Professor Baeta Neves, do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.

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Uma cegonha-branca com um aparelho às costas DR

Cada aparelho, com cerca de 90 gramas, tinha um GPS que dava a posição geográfica da ave, tinha a tecnologia GSM capaz de enviar informação como fazem os telemóveis, e um acelerómetro. Este último instrumento possibilita distinguir a posição da cegonha: se está de pé, a voar, se tem a cabeça para baixo para se alimentar ou se tem a cabeça entre as pernas, um sinal de que está a cuidar dos ovos. Os dados do acelerómetro eram directamente transpostos para o comportamento das aves por um algoritmo desenvolvido por Ricardo Correia, aluno de doutoramento do Centro de Biologia Ambiental da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Depois de colocados os aparelhos nas costas das aves, estes emitiam sinais sobre a situação de cada cegonha cinco vezes por dia: às 5h, às 8h, às 11h, às 14h e às 17h. Segundo Aldina Franco, este número de sinalizações é suficiente para detectar viagens até aos aterros, já que as aves passam muitas horas lá – no Inverno, perto de 80% das cegonhas podem ser encontradas nestes locais.

As cegonhas escolhidas para a experiência viviam ao redor de cinco aterros em Santiago do Cacém, em Cuba, em Évora, Beja e Portimão. Entre cegonhas juvenis que não nidificaram e cegonhas que foram mortas por chocarem contra fios eléctricos ou que foram caçadas, o estudo contou com a informação de 17 cegonhas durante uma média de nove meses.

Sem anos maus

O estudo mostrou que as cegonhas que viviam perto dos aterros visitavam-nos mais frequentemente. “As cegonhas que nidificam perto dos aterros sanitários têm mais crias”, diz Aldina Franco. “Os aterros dão uma vantagem.” As cegonhas que viviam mais longe, procuravam alimento primeiro na área em volta do ninho, como lagostins, gafanhotos e outros pequenos animais, e só depois voavam até ao mundo do lixo, caso não tivessem tido sorte antes.

Durante a altura em que não há nidificação (de Novembro a Fevereiro), as 17 cegonhas visitaram os aterros, chegando algumas a fazer viagens de dezenas de quilómetros. Durante a nidificação, houve menos visitas, mas apenas uma das cegonhas não recorreu a nenhum aterro para se alimentar.

A importância dos aterros para estas 17 cegonhas estende-se ao resto da população que passa cá o Inverno. “Todas as cegonhas têm ninhos a uma distância que permite alcançar aterros”, diz a investigadora. E a dinâmica destes espaços é diferente da da natureza em que há uma oscilação entre anos bons, com mais alimento, e anos maus, com menos alimento, que determina o sucesso de sobrevivência de ninhadas. “Os aterros são fantásticos, porque o alimento é seguro e abundante”, sustenta. Não há anos maus.

Isso pode ter sido determinante para os indivíduos terem desistido de migrar. “Essa é a pergunta que me fascina”, admite Aldina Franco, que tem duas hipóteses para a mudança de comportamento. Há outra espécie em que a investigadora está interessada para responder esta questão, o peneireiro-das-torres (Falco naumanni). Inês Catry, investigadora do Centro de Ecologia Aplicada Professor Baeta Neves que integrou este estudo, está também a investigar a população de peneireiro-das-torres em Doñana, na Andaluzia.

Esta espécie, que vive quatro a cinco anos, também está a sofrer uma alteração semelhante à da cegonha, com muitos indivíduos a deixarem de migrar. Uma hipótese é que os mais fracos que não têm capacidade para migrar estão a conseguir sobreviver no Inverno menos rigoroso da Península Ibérica, segundo Aldina Franco, formando uma população residente. Há exemplos semelhantes em Portugal relacionados com as alterações climáticas: alguns indivíduos das andorinhas-das-chaminés e das andorinhas-dos-beirais também deixaram de migrar.

Mas para a cegonha, que vive muito mais tempo do que os peneireiros, Aldina Franco especula que existe uma interacção social entre os indivíduos, tendo havido uma aprendizagem gradual no uso dos aterros como fonte de alimentação, que permitiu às cegonhas irem desistindo da migração, ao mesmo tempo que os Invernos foram suavizando.

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Cegonhas num aterro sanitário em Portugal DR

Haverá uma excelente oportunidade para testar esta hipótese nos próximos tempos. Uma directiva europeia quer acabar com os aterros a céu aberto até ao fim de 2016. Uma óptima medida ambiental, defende a investigadora. Mas que pode pôr fim à abundância de alimento para as cegonhas.

“Queremos saber quais vão ser as consequências do fecho destes aterros”, diz a investigadora. Não se sabe se o comportamento destas aves pode ser revertido, mas Aldina Franco lembra que como ainda há indivíduos que mantêm a migração anual, por interacção social, os residentes podem voltar ao antigo padrão. “É uma fantástica oportunidade para estudar as cegonhas e ver se haverá uma alteração no comportamento de migração.”

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