Dos filhos de três "pais" ao genoma sintético, os últimos desafios da bioética

Os avanços na biotecnologia obrigam as sociedades a lidar com dilemas éticos sem precedentes. Uma tesoura molecular que edita o ADN, a construção do genoma humano sintético e os filhos de três pais são três temas no centro do furacão.

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Muitas das técnicas discutidas pela bioética mexem com a molécula de ADN DR

Na semana passada, comemoraram-se os 20 anos do nascimento da ovelha Dolly, criada por um processo de clonagem, e que gerou uma das maiores discussões sobre bioética na década de 1990. A Dolly provava que era possível usar o núcleo de uma célula adulta de um mamífero para gerar um novo organismo com o mesmo material genético. Na altura, um dos grandes receios era que a tecnologia de clonagem fosse usada para o desenvolvimento de clones humanos. Duas décadas volvidas, esse futuro temido não se tornou realidade.

Mas esta área da biologia e da saúde ligada ao controlo da reprodução, mexendo com a matéria-prima que faz de nós humanos, e que desde o final do século XIX nos assombra com a ideia da eugenia, continua a empurrar a fronteira da vida. Eis três exemplos de temas que obrigaram cientistas, políticos e especialistas em ética a reunir-se no passado recente, no presente e que vão obrigar a fazê-lo no futuro próximo.

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A Dolly tornou-se a mais famosa ovelha por ser um clone JEFF J MITCHELL/REUTERS

Três pessoas para um bebé

A lei que permite a fertilização in vitro (FIV) com recurso ao material genético de três pessoas – duas mulheres e um homem – foi aprovada pelo Parlamento do Reino Unido em Março de 2015. Ainda não nasceu nenhum bebé com três pais biológicos – os cientistas envolvidos nesta área preferem a expressão “um bebé de três pessoas” – mas há quem acredite que isso seja possível já em 2017.

O objectivo desta técnica é evitar as doenças genéticas que estão associadas às mitocôndrias e que afectam uma em cada 6500 crianças. As mitocôndrias são pequenas estruturas que existem no interior das nossas células e que têm material genético dentro de si, um pequeno anel de ADN próprio e independente do ADN do núcleo celular. Como são as mitocôndrias que geram a energia necessária às funções celulares, as doenças genéticas associadas às mitocôndrias afectam os órgãos que necessitam de muita energia, tais como o cérebro, o coração ou fígado.

Por outro lado, ao contrário do outro ADN que passa para a geração seguinte numa proporção de 50/50 (metade do pai e metade da mãe), o ADN mitocondrial é transmitido exclusivamente pela mãe, dentro do ovócito. Isto significa que se uma mãe tiver uma doença genética associada às mitocôndrias vai transmiti-la aos filhos. Esta nova técnica, desenvolvida por cientistas da Universidade de Newcastle, consiste numa fertilização in vitro que nestes casos recorre a ovócitos de uma mulher saudável, com mitocôndrias saudáveis, mas que são esvaziados do ADN nuclear. A esse ovócito junta-se depois o ADN dos pais do futuro bebé. Há, portanto, uma transferência das mitocôndrias e, por isso, o bebé terá uma pequena porção do material genético de uma dadora que, segundo a lei aprovada no Reino Unido, permanece anónima e sem quaisquer direitos sobre a criança.

O processo, contudo, não está isento de críticas ou reservas. E o receio mais comum entre os que questionam esta técnica é o de sempre: o medo de se estar a abrir uma porta para manipulações ou para a eugenia. Aliás, após a aprovação da lei, o Parlamento britânico passou a responsabilidade da validação desta prática para a Autoridade de Fertilização Humana e Embriologia (HFEA, na sigla em inglês). Um painel de peritos escolhidos por esta entidade pediu mais provas sobre a sua segurança antes de emitir as autorizações necessárias para que os médicos avancem com este procedimento. Espera-se que o relatório dos peritos seja divulgado nos próximos meses.

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Teme-se que a manipulação de embriões humanos seja usada para a eugenia DR

Entretanto, em Junho último, a revista Nature publicou um estudo da equipa de investigadores da Universidade de Newcastle, liderada por Doug Turnbull e Mary Herbert, que descrevia os resultados de uma série de experiências que queriam testar a segurança de uma das técnicas para a doação mitocondrial. No artigo, os cientistas referiam que, oito horas após o procedimento, foi possível criar embriões (de uma fase inicial) com menos de 5% do ADN mitocondrial com mutações. Essa é uma das principais questões a resolver antes de avançar para a prática clínica: os cientistas ainda não sabem com precisão como esta substituição do ADN mitocondrial pode afectar os embriões e, em última análise, os bebés.

A CRISPR/Cas9 e a edição genética

A velocidade com que a mais recente tesoura de edição genética surgiu é espantosa, mas podemos agradecer às bactérias pela revelação. A CRISPR/Cas9 é um aparelho molecular descoberto nas bactérias e serve de sistema imunitário contra os vírus que as atacam. A ideia de bactérias com uma espécie de sistema imunitário apanhou de surpresa a comunidade científica em 2006. Mas a revolução foi outra: em apenas seis anos, este mecanismo molecular foi transformado para ser usado na edição do ADN.

A CRISPR/Cas9 permite escolher um local específico do ADN e cortá-lo. Os benefícios são fáceis de se compreender. É na molécula de ADN, no núcleo das células, que estão codificados os genes – os “moldes” que permitem construir as proteínas. Uma mutação numa letra do ADN pode provocar doenças ou tornar alguém susceptível ao cancro. Por isso, a medicina esfregou as mãos com a ideia de uma ferramenta eficaz para eliminar doenças genéticas.

Nos últimos anos, o uso da técnica aumentou exponencialmente e foi melhorada. Há pouco tempo mostrou-se que já é possível usar este sistema para substituir algumas letras do ADN por outras. Deste modo, foi possível alterar a variante perigosa de um gene que aumenta o risco da doença de Alzheimer para a variante inofensiva.

No fim de Junho, um comité consultivo dos Institutos Nacionais da Saúde dos Estados Unidos aprovou o uso da CRISPR/Cas9 para terapias contra o cancro que dependam do uso de linfócitos T, células do sistema imunitário – abrindo a porta para ensaios clínicos em humanos, explica uma notícia da revista Nature. Neste contexto, a Universidade da Pensilvânia espera ver aprovado um ensaio clínico para retirar linfócitos T de doentes com cancro. Depois, os cientistas vão usar a técnica para editar alguns genes destas células para as tornar mais fortes e resistentes no combate ao cancro. Finalmente, irão injectar de volta as células alteradas nos doentes, esperando resultados no tratamento da doença.

Este passo mostra a rapidez com que a técnica está a passar para a clínica. No entanto, há quem tenha medo que ela seja usada para alterar a linha germinativa em humanos. Esta linha genética, que nas mulheres é representada pelos ovócitos e nos homens pelos espermatozóides, é aquela que passa para a próxima geração e permite o desenvolvimento de um novo indivíduo. Alterando um gene das células reprodutivas está-se a alterar para sempre a identidade genética da descendência.

“Esse tipo de investigação pode ser usado para modificações não terapêuticas”, lia-se num comentário na Nature em 2015 assinado por cinco investigadores com o título “Não editem a linha germinativa humana”. Os autores argumentavam que se alguém usasse a CRISPR/Cas9 para editar a linha germinativa, o público em geral entraria em pânico e a técnica seria proibida totalmente. Desta forma, um potencial uso benéfico na medicina terapêutica, como o caso dos linfócitos T, seria negado. Para os autores, é necessário definir as regras de como usar esta inesperada e eficiente tesoura do ADN.

Genoma humano construído no laboratório

Em 2010, foi anunciada a criação da primeira célula sintética, cuja sequência de ADN, com base no genoma de uma bactéria, foi construída, letra a letra, no laboratório do cientista e empresário Craig Venter, que tem um instituto com o seu nome nos Estados Unidos. A célula era capaz de crescer e reproduzir-se. No início de Junho último, 25 cientistas (a maioria dos Estados Unidos) anunciaram num artigo publicado na revista Science que queriam lançar o projecto de cerca de 90 milhões de euros para fazerem o mesmo, mas com o genoma humano.

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A biologia sinética marcou 2010 com a divulgação das primeiras células cujo genoma foi produzido no laboratório Science/AAAS

O objectivo é juntar, também no laboratório, cada um dos 3000 milhões de pares de letras de ADN que compõem o genoma humano, com os seus cerca de 22.000 genes, e colocar a sequência numa célula, para ver se ela trabalha. Este seria o projecto subsequente ao grande Projecto do Genoma Humano, que mapeou o ADN da nossa espécie em 2003, depois de anos de trabalho e que envolveu cientistas de todo o mundo.

Um dos objectivos da nova experiência é compreender como é que os genes são regulados, já que há muitos mistérios nestes mecanismos biológicos. Mas as aplicações poderão ser bem mais prosaicas, como o crescimento de órgãos para transplantes e o desenvolvimento de vacinas e fármacos, usando células e órgãos humanos para produzir e testar estas substâncias. Os cientistas querem também fazer o mesmo com genomas de outras espécies importantes para a humanidade, como plantas agrícolas.

Mas há também várias questões éticas sobre esta nova aventura da ciência. Apesar de o grupo garantir que o projecto não servirá para sintetizar humanos, e querer abrir a discussão à comunidade científica de como se vai desenrolar, há quem esteja de pé atrás. Ao contrário do Projecto do Genoma Humano, em que a informação era digital, e toda a gente poderia ter acesso aos resultados daquele trabalho, tirando partido do conhecimento produzido, a nova empreitada terá como finalidade a produção de um entidade física, e ainda não está definido como é que os seus resultados seriam partilhados.

Mas há uma questão mais a montante que os proponentes do projecto não abordaram. “Será que agora se tornou boa ideia desenvolver as técnicas para se sintetizar genomas humanos?”, questionaram Laurie Zoloth (especialista em bioética da Universidade do Noroeste em Evanston, Ilinóis) e Drew Endy (especialista em biologia sintética da Universidade de Stanford, na Califórnia), citados na revista New Scientist, num artigo de Junho sobre esta novidade. “Na sua proposta, [os 25 cientistas] falham em colocar qualquer questão. Nem entram em detalhes sobre os limites específicos daquilo que não deve ser feito”, argumentam os dois investigadores. “Estas omissões obrigam a perguntar se este grupo tem capacidade para organizar e liderar esta discussão.”

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