Da edição natural nas bactérias até à promessa de unicórnios

A nova técnica de edição genética, que permite mexer no ADN num jogo de “corta e cola” genes, arrasta tantas promessas como medos. Para uns será a "cura para todos os males" e para outros uma porta aberta para o fim da espécie humana como a conhecemos.

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A CRISPR/Cas9 chegou com a promessa de ser uma forma muito precisa, fácil e rápida de alterar genes DR

Ninguém inventou a CRISPR/Cas9. Este mecanismo foi usado desde sempre pelas bactérias para se defenderem dos vírus. Porém, só recentemente foi descoberto e estudado pelos cientistas que rapidamente viram nesta técnica “natural” uma porta aberta para a edição genética. A descoberta foi feita em 2012 ou em 2013 por duas equipas diferentes que ainda discutem na justiça norte-americana quem detém os direitos das patentes. A técnica de edição genética, que permite mexer no ADN num jogo de “corta e cola” genes, promete avanços sem precedentes no tratamento de doenças, mas também abriu uma caixa de Pandora que guarda os cenários de, um dia, fabricarmos humanos desenhados à medida.

Alguém se lembra do medo e das previsões aterradoras feitas a propósito da clonagem? A ciência está, de novo, a colocar o bom senso e os limites dos cientistas à prova e a exigir a definição de regras para o uso das ferramentas que podem ser usadas para o bem e para o mal. Neste caso, a discussão já tem alguns anos e é à volta da técnica de edição genética CRISPR. A sigla que na boca de alguns cientistas pode ser a cura para muitos (todos?) males e, para outros, pode significar o princípio do fim da espécie humana como a conhecemos.

Em relação a outras técnicas, a CRISPR chegou com a promessa de ser uma forma muito precisa, fácil e rápida de alterar genes. Há uma proteína que age como uma tesoura e corta o ADN, e há uma molécula de ARN que guia a tesoura para qualquer ponto do genoma que quisermos. O mecanismo é muito semelhante a um corrector ortográfico que recebeu a ordem para substituir uma determinada palavra, sendo que podemos fazer este jogo de “corta e cola” com uma palavra inteira (um gene) ou só com algumas letras. E isto vale para todas as espécies, das plantas aos animais, passando (ou terminando) nos seres humanos. Nos últimos anos a técnica tem sido mais testada em células estaminais e em animais (ratos, ratinhos e macacos). As notícias vão surgindo, desde equipas de cientistas que tentam criar embriões que são quimeras porco-humanos (integrando células estaminais humanas em embriões de porco e vaca) com a ajuda da CRISPR a grupos em Filadélfia que mostraram também que podiam usar esta técnica para desligar genes do vírus da sida em células humanas infectadas. 

Ao salto da descoberta da possibilidade de usar o sistema CRISPR e a proteína Cas9 para editar genes, seguiu-se o sobressalto das possíveis consequências mas também a revelação do complexo trabalho que, afinal, é necessário para perceber como esta técnica pode ser segura e eficaz em embriões humanos. Em 2015, noticiava-se a primeira experiência com embriões humanos que foi reclamada por uma equipa de cientistas chineses.

Na conferência de imprensa que a revista Nature organizou esta terça-feira a propósito do artigo que fala da correcção de um gene em embriões nos EUA, Paula Amato, da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon (EUA) e uma das autoras do artigo, desvalorizou as tentativas anteriores. “Os estudos que foram feitos até agora eram muito pequenos, resultaram em embriões anormais e foram feitos com ovócitos imaturos. A nossa investigação é o primeiro grande estudo do qual podemos tirar conclusões razoáveis.” A mais importante será que é possível corrigir uma mutação num gene e reparar o ADN de um embrião, eliminando a probabilidade de desenvolver uma doença, com segurança e eficácia.

Numa conferência em 2015, Jennifer Doudna, investigadora da Universidade da Califórnia que reclama a descoberta (em 2012) da CRISPR para modificar genomas com a sua colega Emmanuelle Charpentier, previa a “aplicação clínica desta tecnologia pelo menos, em adultos, dentro dos próximos dez anos”. Nessa intervenção e noutras, Jennifer Doudna revelava o entusiasmo com a descoberta mas também algumas reservas realistas sobre os possíveis riscos, mostrando-se cautelosa nas promessas. Aliás, ela foi uma das cientistas que em 2015 pediu uma “pausa global” em qualquer aplicação clínica da tecnologia CRISPR em embriões humanos. Porém, num livro que publicou este ano com Samuel Sternberg intitulado Uma Fenda na Criação: Edição Genética e o Impensável Poder do Controlo da Evolução, a cientista escreve sobre estarmos “à frente de uma nova era em engenharia genética e domínio biológico” que irá permitir tratamentos que salvam vidas. Admite mesmo (e a falar a sério) que a CRISPR poderá até trazer para este mundo “mamutes-lanosos, lagartos alados e unicórnios”. “Não demorará muito para que a CRISPR nos permita moldar a natureza à nossa vontade.” Será ficção científica?  

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