Criada uma supermolécula que é mais forte do que a água

É composta por duas partes – uma argola e um haltere – que agarram facilmente dentro da água átomos como o cloro ou o iodo. Esta nova molécula foi construída com a participação de dois cientistas portugueses.

Desenho da nova molécula composta por uma argola e um haltere
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Desenho computacional da nova molécula composta por uma argola e um haltere DR
Vítor Félix e Igor Marques, da Universidade de Aveiro
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Investigadores Vítor Félix (à esquerda) e Igor Marques DR

Antoine Lavoisier, o famoso químico francês do século XVIII, dizia que na natureza nada se perdia, nada se ganhava, tudo se transformava. Ou seja, a matéria não é dada a milagres mas pode ser alterada. Este é o terreno dos químicos, que mexem nos átomos e nas moléculas, jogando com as suas interacções para os mais variados fins. E foi neste terreno que uma equipa internacional com cientistas portugueses construiu uma molécula bastante complexa, que se liga facilmente, em meio aquoso, a átomos do grupo onde estão o flúor, o cloro, o bromo ou o iodo – algo que, geralmente, é muito difícil de fazer.

O desenvolvimento desta supermolécula, publicado na revista Nature Chemistry, pode ajudar a criar moléculas utilizadas para tratar doenças.

Nesta história microscópica, a água era a barreira invisível que impedia os químicos de trabalhar com o grupo dos halogéneos, de que fazem parte o flúor, o cloro, o bromo ou o iodo. No meio aquoso, os átomos do grupo dos halogéneos ficam rapidamente rodeados pelas moléculas de água (H2O), por isso é difícil serem agarrados por outras moléculas.

Se olharmos para a Tabela Periódica – que organiza de forma genial os elementos químicos, tendo em conta o número de protões e o número de electrões de cada átomo –, verificamos que os átomos halogéneos estão reunidos na penúltima coluna (vertical) da tabela. Cada átomo tem um dado número de protões e neutrões no núcleo, e tem ainda os electrões (em igual número dos protões) a girar à volta do núcleo atómico. Por exemplo, o iodo, que fica mais em baixo na coluna dos halogéneos do que o cloro, tem muito mais protões e electrões do que o cloro.

Os electrões vão-se dispondo à volta do núcleo dos átomos por camadas, mais exactamente níveis de energia. Mas a estabilidade de cada átomo (independentemente de ser ou não um halogéneo) depende do número de electrões na camada mais externa. Se faltarem electrões nessa camada, o átomo tenta estabilizar a nuvem electrónica, ligando-se a outros átomos e formando moléculas.

No caso dos átomos dos halogéneos, falta-lhes um único electrão na camada externa para ficarem estáveis. Por isso, têm grande tendência para roubar um electrão a outro átomo. Por exemplo, o cloro passa a ião cloreto quando ganha esse electrão (os iões são átomos que ganham ou perdem electrões). É também por isso que os halogéneos são conhecidos por se ligarem a metais, produzindo sais. O sal da cozinha, o famoso cloreto de sódio, surge quando um átomo do cloro rouba um electrão ao sódio e assim os dois átomos ligam-se.

Tal como o cloreto, há outros átomos e moléculas que ficam mais estáveis ao ganharem electrões, tornando-se então iões de carga negativa, ou aniões (os electrões dão cargas negativas aos átomos, enquanto os protões lhes dão cargas positivas).

A molécula de água é uma fonte de electrões para todos os aniões. No caso dos halogéneos, a água liga-se a eles, dificultando assim o acesso de outras moléculas a esse grupo de átomos. É por isso que os químicos têm dificuldade em manipular os halogéneos no meio aquoso, assim como outros aniões.

Mas, nalgumas situações, seria importante conseguir usar certos halogéneos para melhorar a saúde humana, como no caso da fibrose quística. Nesta doença, provocada por mutações genéticas, há precisamente um problema com o transporte dos iões de cloro de dentro para fora das células, o que compromete a lubrificação dos pulmões, desencadeia infecções e reduz a esperança de vida das pessoas com esta doença.

Mas as equipas de Vítor Félix, da Universidade de Aveiro, e de Paul D. Beer, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, conseguiram não só criar uma molécula capaz de roubar os átomos halogéneos da água como mostrar em modelos computacionais o que está a acontecer: a nova molécula obriga os átomos de halogéneo a unirem-se a ela, vencendo as ligações das moléculas de água. A nova molécula prova que é possível manipular em meio aquoso não só os átomos de halogéneo, mas também outros aniões.

Da química de síntese à supramolecular
Vítor Félix, de 50 anos, doutorado em química, explica-nos que, ao longo da sua carreira, se foi afastando da química de síntese e aproximando-se da química supramolecular, a sua área do trabalho actual. Mas o que é química de síntese e a química supramolecular?

A primeira está associada à química orgânica – também conhecida como química do carbono – e trabalha essencialmente com a alteração de partes de uma molécula, para que ganhe certas propriedades. A construção de medicamentos passa por este tipo de trabalho. Durante muito tempo, esta área foi intensamente explorada pelos cientistas. “Mas a química de síntese está muito esgotada”, diz o investigador ao PÚBLICO. Por isso, de alguns anos para cá, os cientistas têm vindo a interessar-se pela relação mais complexa entre as moléculas. “O melhor exemplo da química supramolecular é o ADN”, acrescenta Vítor Félix.

A longa cadeia de dupla hélice do ADN, onde estão inseridos os genes, é constituída por uma sequência de diversas moléculas mais pequenas. O ADN, por sua vez, interage com muitas outras moléculas para que se dê a produção de proteínas a partir dos genes. Este é um exemplo de química supramolecular porque estas substâncias entram em contacto umas com as outras através de interacções químicas, produzindo diversas reacções e novas moléculas.

A nova molécula criada pelas equipas de Vítor Félix e Paul D. Beer, que pertence à família dos rotaxanos, também vive deste tipo de diálogo. “Os rotaxanos são uma família de duas moléculas, em que uma fica dentro da outra”, explica Vítor Félix, acrescentando que na última década os rotaxanos foram sendo criados pelos cientistas para se investigarem as ligações químicas com os aniões, os átomos que ganharam electrões.

Tal como os outros rotaxanos, a nova molécula é constituída por duas moléculas, em que uma se parece com um haltere e a outra com uma argola. As duas estão unidas da seguinte maneira: a haste do haltere passa por dentro da argola. E, para que este haltere fique preso pela argola, nas extremidades existem outras moléculas volumosas.

Há cinco anos que os cientistas de Oxford estavam a trabalhar isto. É mais fácil para os químicos encontrarem moléculas que se ligam aos iões de halogéneo quando estes se encontram em solventes orgânicos. Por isso, para chegarem até à nova molécula, os cientistas foram desenvolvendo substâncias que iam agarrando aqueles iões em soluções progressivamente com mais água e menos solvente orgânico.

Para se construir o novo rotaxano, primeiro foi necessário fabricar o haltere, juntando quimicamente as extremidades à haste. Depois, a futura argola, que ainda não estava fechada, foi ligada à haste. Finalmente, para que a argola se fechasse, foi necessário que um ião de halogéneo – neste caso o cloreto – se ligasse ao centro da molécula. Só então o novo rotaxano ficou pronto para ser utilizado.

Por fim, os cientistas em Oxford testaram a substância. “Puseram a molécula dentro de água e foram ver se era capaz de se ligar ao ião cloreto, ao ião brometo e ao ião iodeto”, explica Vítor Félix. Tiveram sucesso. “A molécula reconhece os halogéneos em água pura. Por isso é que é tão diferente das outras”, diz o investigador. De todos os iões, a ligação mais forte era a do ião do iodo (ou iodeto).

Computador explica experiência
O segredo para este sucesso deveu-se à ligação criada dentro da nova molécula. O rotaxano construído pela equipa de Oxford tem, já no seu centro, um átomo de iodo ligado a um átomo de carbono. A água, por sua vez, tem átomos de hidrogénio ligados ao oxigénio. Dentro da solução, é a ligação de hidrogénio das moléculas de água que vai competir com a ligação de halogéneo do rotaxano pelos átomos de halogéneo. Mas o novo rotaxano é mais eficiente a dar os seus electrões aos halogéneos do que as moléculas de água.

Vítor Félix explica que, a partir deste rotaxano, é teoricamente possível construir moléculas apropriadas para captar outros aniões. Há muitos aniões que existem nas células e entram em vários ciclos bioquímicos da vida, como os ciclos de produção de energia. “Isto abre novas perspectivas”, defende o cientista, adiantando que este conceito ajudará no desenvolvimento de novos fármacos e poderá servir para compreender a bioquímica de alguns processos metabólicos.

Mas todas estas conclusões, e o próprio artigo na Nature Chemistry, só foram possíveis graças ao trabalho teórico da equipa de Aveiro, que contou com Igor Marques, aluno de doutoramento de Vítor Félix. Após as experiências laboratoriais em Inglaterra, a equipa portuguesa foi demonstrar a teoria que explica por que é que a nova molécula de rotaxano conseguia fazer aquilo que fazia.

“O processo computacional durou cerca de um ano”, diz Vítor Félix. “Conseguimos encontrar a explicação racional para justificar os resultados laboratoriais”, resume o cientista português. 

“Esta molécula foi muito bem pensada, porque não é fácil produzir uma molécula solúvel”, sublinha ainda Vítor Félix, adiantando que são as moléculas volumosas na extremidade do haltere que permitem à supermolécula manter-se dissolvida em água.

O cientista português já está a aplicar a ideia para lutar contra a fibrose quística. “Estamos a tentar arranjar pequenas moléculas que transportem cloreto através da membrana [celular]”, explica. O objectivo é criar pequenas moléculas que agarrem os iões de cloro dentro da célula, que os carreguem até à membrana, que a atravessem e, por fim, os larguem no lado exterior da célula.

Estes testes estão já a ser feitos em computador, com programas informáticos que têm em conta as relações químicas entre as moléculas e as membranas celulares. Se funcionarem, estas moléculas podem vir a tornar-se uma terapia para a fibrose quística, levando iões de cloro de um lado para o outro, defende Vítor Félix.

Pode ainda haver outras aplicações deste novo conceito em áreas como a engenharia dos materiais ou a engenharia de cristais. Por enquanto, Vítor Félix saboreia a publicação do artigo, fruto de uma colaboração de mais de dez anos com a equipa de Paul D. Beer, que levou ao convite para desenvolver a parte teórica desta investigação: “Uma pessoa não publica na Nature todos os dias.”

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