Crepúsculo dos reitores, ou como se investiga às marteladas

As universidades são, na verdade, dois sistemas onde o ensino e a investigação coabitam, mas sem união de facto.

O “regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/2016 e alterado pela Lei n.º 57/2017, tem revelado a verdadeira face dos que sobrevivem cientificamente à custa dos bolseiros. As universidades desdobram-se em notas de imprensa com as suas posições nos rankings internacionais e com descobertas feitas pelos seus investigadores. Glorificam-nos, mas aparentemente só enquanto bolseiros, que apenas precisam de um “subsídio de manutenção mensal” que se presume manter-nos vivos e bem lubrificados. Um subsídio, sim, tal como o são o de acção social escolar e o de morte e funeral. Salários e contratos de trabalho? Jamais!

O reitor da Universidade de Coimbra (UC), professor doutor João Gabriel Silva, profetizou que “ficará registado quem foram os autores do mais grave atentado contra a escola pública, de direito público, em toda a democracia portuguesa”, não perdendo a oportunidade de dar a entender que o bom caminho seria transformar a sua escola pública numa de direito privado.

O reitor da Universidade de Lisboa, professor doutor António da Cruz Serra, por sua vez, declarou: “Eu preciso de professores na universidade, francamente, não preciso que me obriguem a contratar investigadores.” Mas quantos investigadores contratou até hoje? Zero! Como é evidente, precisa, de facto, que o obriguem.

O ex-secretário de Estado do Ensino Superior, professor doutor José Ferreira Gomes, consegue, porém, em meia página de um jornal, transcender tudo o que de mais humilhante um investigador bolseiro pode ouvir. Começa por enaltecer o Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) por ter tentado — silenciosa e envergonhadamente — que a Presidência da República não promulgasse a Lei 57/2017. E, embora declare “que a situação era insustentável, não tenho dúvida”, não acredita no regime excepcional de concursos públicos para contratação, em substituição de algumas bolsas (porque não se trata de todas, nem pouco mais ou menos!), que a lei consagra como forma de impor alguma justiça. Afirmando, ainda, que nele também “não acreditam os actuais bolseiros que já tinham encontrado um lugar no sector não académico e agora recuaram para o conforto de um emprego que parece perpétuo e sem grandes exigências” — “Só aqueles poucos que sabem que só esse artifício lhes dá o passaporte para uma reforma garantida o poderão aceitar sem remorsos” —, desvirtuando o seu próprio emprego, sem vergonha nem remorsos, considerando-o confortável e sem grandes exigências, e inculpando sem pudor aqueles que exigem que se aplique a lei — lei pela qual se lutou anos a fio e que, mesmo assim, está muito aquém da verdadeira justiça.

Do seu discurso, eu gostaria só de perceber mais duas coisas: primeiro, como é que um bolseiro fora do sector académico tem um “lugar” se continua a ser bolseiro, sem direito a um contrato de trabalho?; e, segundo, quantos foram os que “recuaram” se nenhum concurso dos contratos de seis anos foi ainda aberto pelas universidades?

É aviltante ouvir da boca de colegas afortunados de uma geração que nunca foi bolseira que não é admissível que agora tenhamos direito a um contrato de seis anos e depois a um contrato de trabalho por tempo indeterminado, omitindo os muitos anos já acumulados em que trabalhámos com bolsas — eternamente classificadas como bolsas de formação — e o facto de ainda termos de passar dois concursos públicos e um período experimental para lá chegarmos. Uma geração que muito teve da universidade (e bem!): um contrato de Assistente Estagiário quando terminava o curso; a promoção automática para Assistente após o mestrado ou as Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica; a promoção para Professor Auxiliar após o doutoramento e, passados cinco anos, a tão ansiada nomeação definitiva que a colocava no quadro.

Era assim! Tal como na tropa se dizia que um coronel é um cadete que não morre, na Academia um professor era um assistente estagiário que não morria.

A 23 de Junho, em reunião com a Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), a Reitoria da UC garantiu que abririam até ao final de Julho mais de 80 concursos para a carreira docente, aos quais os bolseiros doutorados poderiam concorrer e que, com este artifício legal, isso seria um cumprimento parcial da lei. Ora... Julho acabou. Quantos concursos abriram? Zero! E, mesmo que tivessem aberto todos, entendamos uma coisa: cumprir parcialmente a lei é não cumprir a lei. A lei ou se cumpre ou não se cumpre. Qual seria a reacção das universidades se, alegando falta de condições financeiras, os alunos pagassem só metade das propinas? Seriam meio multados, meio expulsos ou acabariam meio licenciados?

A UC, onde trabalho — ou melhor: “bolso”—, tem, agora, a tremenda oportunidade de contratar cerca de 300 investigadores por seis anos, pagos inteiramente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e, num pranto, não o quer fazer porque findos os seis anos terá de abrir o mesmo número de concursos para lugares de carreira, afirmando, claro está, não ter condições financeiras para isso. Porém, simultaneamente, chora o seu quadro envelhecido e, numa incrível coincidência, dentro de seis anos terá aproximadamente menos 300 docentes e investigadores nos quadros devido a reformas. Alguém compreende, então, este pranto? Não, ninguém compreende!

O que ficou claro, desde o primeiro minuto, é que a questão fundamental para o CRUP não é, nem nunca foi, a garantia de financiamento futuro. A questão é que o modelo da união do ensino e da investigação nas universidades, que está inscrito nos seus estatutos, não lhes interessa. Embora se apregoem como universidades de investigação, tornaram-se meras escolas de instrução superior, “arrendando” os seus espaços aos centros de investigação, cobrando-lhes 20% de todo o financiamento que eles conseguem por si próprios, “renda” esta que não querem devolver à investigação nem para pagar meia dúzia de contratos. As universidades são, na verdade, dois sistemas onde o ensino e a investigação coabitam, mas sem união de facto.

O CRUP não reconhece que as suas universidades são hoje anãs aos ombros de gigantes, gigantes que são seus filhos, filhos que enjeita e devora. Julgam que se manterão fortes caminhando sobre andas de pau? Os seus líderes não são dignos da responsabilidade que lhes foi incumbida nem da oportunidade que lhes foi dada. E, no entanto, perguntava já Nietzsche: “Pode um burro ser trágico? — Sucumbir sob um fardo que não pode carregar nem sacudir?” As opiniões veiculadas neste artigo não reflectem necessariamente a opinião da ABIC

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