Combustíveis fósseis, saúde e sociedade

Um conjunto de cientistas portugueses, de um largo espetro de disciplinas, propôs uma carta aberta para exprimir a sua condenação de um retrocesso na sustentabilidade do planeta e em defesa de políticas de energia socialmente responsáveis.

1. Reconheçamos que nunca foi tão longa a esperança de vida, e que no mundo no qual vivemos a extensão da vida se acompanhou de uma proporção sem precedentes de seres humanos libertos das mais miseráveis dependências, sejam as dos lugares onde o acaso os fez nascer, a opressão dos espartilhos étnicos ou a malha asfixiante do jogo de extorsão económica. Reconheçamos também que as transições demográfica, epidemiológica e nutricional, que continuam a moldar os indicadores em que crescem os anos de vida, aceleram como nunca a acentuação de desigualdades entre indivíduos em cada sociedade e essa desigualdade, sabemo-lo bem, é o mais terrível inimigo da saúde.

E do mesmo modo, a desigualdade entre países. A esperança de vida nos países mais ricos é muito superior à dos países mais pobres, a quantidade e a qualidade de vida são maiores, mesmo para o mesmo nível nacional médio de riqueza, naquelas sociedades onde essa riqueza está distribuída de forma mais equitativa. A saúde resulta muito mais da forma como as sociedades se organizam do que do esforço individual, e há efeitos da própria desigualdade que vão para além da pobreza: no ar que se respira, na alimentação a que se tem acesso, na partilha do lazer ou na expressão livre da cultura. Mas é preciso reconhecer também: pela primeira vez, e aparentemente não só nos países de mais alto rendimento, as novas gerações irão viver menos do que a geração dos seus pais. Aquilo com que crescentemente nos confrontamos – um discurso idílico e enganador, apoiado apenas numa parte da verdade, refletida na ainda crescente duração da vida – é a recusa em olhar para o ricochete que se desenha, em não entender que tudo o que fizemos enquanto sociedades, nas nossas escolhas politicas e económicas, está perigosamente a levar-nos para um caminho insustentável impulsionado pela ganância.

E é muito claro que a escolha das fontes e a gestão dos recursos em energia é central nessa organização futura do nosso espaço de vida e na nossa condição de pessoas, pois determinam tudo: o clima, a alimentação, a mobilidade, as escolhas tecnológicas e as próprias relações sociais. Se queremos mudar o sentido que agora já se percebe negativo na evolução, se queremos acelerar o progresso, sobretudo garantindo que o fazemos com decência e justiça, a discussão sobre a energia não pode ser adiada. No mundo global e no nosso espaço de proximidade, sabemos que as escolhas do passado, os combustíveis fósseis, são passado!

2. Como recentemente um artigo na revista Science recordava, em resposta a um aumento crescente da procura, até áreas consideradas inacessíveis tecnologicamente começaram a ser alvo de prospeção em busca de depósitos de petróleo e gás. Em muitos casos, essa atividade faz-se sob um assustador silêncio não se discutindo a perturbação inaceitável dos ecossistemas que se espera localmente justificada como uma oportunidade económica para retirar da miséria as regiões implicadas. Por vezes há um consenso enganado em torno do imediato da economia, pois sabemos que em geral a riqueza produzida nada deixa localmente e é acumulada fora entre um limitado número de pessoas e empresas. Por exemplo, no Uganda, o governo previu um lucro de 3,6 mil milhões de dólares por ano a partir de 2018, com a exploração de petróleo, quase o equivalente do orçamento anual do país. Mas não se cuidam os riscos ambientais e comunitários que a extração de petróleo na região dos Grandes Lagos arrasta muito para lá do local específico em que se efetua ou, sobretudo, não se sabe como esse dinheiro será distribuído e por quem!

3. Depois de movimentos antigos e caricaturais, tarde e sem preparação – como quase tudo cá chega –, tenta desenhar-se agora uma realidade desfasada de exploração de combustíveis fósseis em Portugal. Podia olhar-se para este movimento deplorável como mais uma eventual encenação para negócios com contornos imprecisos, da qual estaria ausente um propósito de continuidade efetiva. A realidade internacional, porém, faz temer outros desígnios.

A negação das provas científicas, que partilham governantes com poder excessivo para se poder considerar essa posição apenas ignorância ou divergência de opinião, leva a não reconhecer os efeitos da exploração e utilização de combustíveis fósseis no clima e no território, nos sistemas vivos e na organização social, e muito em particular na disrupção de equilíbrios muito antigos que estão a resultar em fenómenos tão diferentes como o aumento dos tremores de terra ou a emergência de epidemias terríveis. Pode temer-se que sem uma resposta cidadã, preventiva e precautória, feita do reconhecimento das mais sólidas provas científicas, se avance entre nós portugueses para aventuras destruidoras que nenhuma miragem de vantagens imediatas pode justificar. O conhecimento, feito da racionalidade científica, e a vontade de prosseguir caminhos da inovação mostram sem margem para dúvidas que a direção a seguir tem que ser outra. Se queremos preservar os ganhos sociais e sanitários, os ganhos individuais e comunitários em saúde, é fundamental afirmar uma vontade clara de fazer cessar aventuras cujos resultados todos sabemos antecipar: danos irreparáveis para o ambiente, a economia, a saúde e a longevidade das populações.

4. Por tudo isso, um conjunto de cientistas portugueses, de um largo espetro de disciplinas, entendeu propor uma carta aberta: “Combustíveis fósseis e alterações climáticas: resposta a uma preocupação científica e social” (que pode ser consultada no endereço http://cartaabertadecientistasportugal.wordpress.com/), solidária com o sentimento alargado das comunidades científicas que se movimentam a nível internacional, e preparam manifestações públicas para exprimir a sua condenação de um retrocesso na sustentabilidade do planeta e em defesa de políticas de energia socialmente responsáveis, num movimento que alia as preocupações globais com a recusa dos riscos locais.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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